Arquivos do mês de

junho 2015

Bolívia, Perú

Wiphala e as cores do arco-íris

29 de junho de 2015

Aproveitando a deixa de sexta-feira, onde num momento histórico os Estados Unidos aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o país, e dessa decisão uma verdadeira avalanche de arco-íris tomou conta das redes sociais (avalanche essa da qual o Faniquito também participou, óbvia e orgulhosamente), o texto de hoje trata de uma outra bandeira, muito semelhante em sua forma e cores, mas pouco conhecida em território nacional: a Wiphala.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Tivemos nosso primeiro contato com ela durante nossa viagem para o Perú e Bolívia – que juntamente com o Equador, possuem no povo andino a raíz de sua civilização. A cultura andina é exaltada por esses povos, das maneiras mais diversas. Em nossa passagem pelos principais sítios arqueológicos peruanos, nossos guias contavam com orgulho como o povo andino conseguiu camuflar seus ideais e credos em obras europeias, imagens trazidas de fora, e uma série de outros artifícios durante a colonização espanhola. Dessa forma, os andinos conseguiram manter a história de seus antepassados, trazendo adiante uma herança que nós, brasileiros, perdemos com a colonização portuguesa: nossa população nativa foi dizimada, e não sabemos absolutamente nada sobre nossa verdadeira história.

Tendo em vista nossa evolução econômica e o tamanho de nosso território, pode parecer besteira para alguns o resgate desses valores. Mas fato é que o povo andino possui um sentimento nacionalista muito mais forte do que qualquer patriotismo oportunista que costumamos cultivar (principalmente em anos de Copa do Mundo), e um mínimo contato com essa cultura engrandece nossa percepção da riqueza que a história latino-americana possui. E quanto a ela pertencemos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A Wiphala está presente em praticamente todo o território desses três países, comumente ladeando a bandeira nacional – nem sempre em seu formato mais conhecido, quadrado e quadriculado, e sim em faixas representando as cores do arco-íris. Algumas partes do território argentino, chileno e colombiano também possuem população andina, o que populariza ainda mais o símbolo na maioria dos países sul-americanos. Em 2007, a nova constituição boliviana incluiu a Wiphala oficialmente como símbolo pátrio.

Confesso que me senti meio alienado quando vi a Wiphala pela primeira vez, e minha reação óbvia foi “que raio de bandeira é essa?”. Pela quantidade (e disposição) de suas cores, ela é facilmente confundível com a bandeira gay, e isso foi o que mais me chamou a atenção naquele momento. E aquilo me incomodou – não a coincidência, mas sim o fato de eu, sul-americano que sou, nunca ter ouvido falar dela.

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

Acho que a ignorância incomoda naturalmente. Se não o faz, deveria. Desconhecer algo que não faz parte do nosso dia-a-dia deveria despertar a curiosidade. Imergir um pouco na cultura andina (e fizemos isso por algumas vezes, tanto no Perú como na Bolívia) nos trouxe um respeito muito grande por esses povos, sua luta, e um esclarecimento lamentável pela forma como foram massacrados. Às vezes a gente bate naquilo que não conhece, e desmerece quem por algum motivo escolhe caminhos que não os nossos. Foi assim com os andinos. É assim com quem luta todo dia contra o preconceito. Que essas cores, que tanto alegram a gente em dias de chuva e sol, esclareçam de uma vez o quanto o mundo pode ser melhor quando a gente aprende a respeitar – e não massacrar – a bandeira alheia.

Bolívia

Um banho quente

23 de junho de 2015

Nesses dias gelados, me veio à mente uma recordação pertinente ao Faniquito.

Não havia nascido o Sol quando o guia nos chamou. Um frio monumental, da gente não ter coragem de tirar o cobertor. No meio do deserto faz ainda mais frio, e nosso tour em Potosí estava apenas em seu segundo dia. Havíamos lido relatos escabrosos sobre o alojamento em que ficamos durante a noite anterior, e sobre o frio que o acometia: “quase tive um edema“, foi a frase mais chocante que lemos, e que viraria uma piada dali em diante… afinal, as paredes eram bem sólidas, e havia um corredor (fechado e bem protegido) que separava o exterior dos nossos quartos. As camas não eram um primor, mas longe de serem desconfortáveis a esse ponto, e as mantas eram suficientemente grossas e pesadas pra proteger qualquer ser humano daquela temperatura.

Ainda sem sol, mas com uma paisagem que vale acordar cedo.

Ainda sem sol, mas com uma paisagem que vale acordar cedo.

Não tomamos banho, pois era impossível. A energia do lugar estava desligada, e o chuveiro não esquentava. Escovar os dentes já era desafio suficiente, mas que aceitamos. Pessoas com dentes sensíveis não devem fazer o mesmo, pois a água de fato é geladíssima. Poucos minutos depois estávamos prontos pra levantar acampamento. O café da manhã não seria ali.

O tour pelo Salar de Uyuni – a maior planície de sal do mundo – leva normalmente de 4 a 6 dias. Entre as diversas áreas do parque (que estarão por aqui em textos futuros, inclusive falando do próprio Salar), existem esses acampamentos. Assim como acontece no Atacama – vizinho ao Uyuni, no Chile, é impossível visitar tudo em somente um dia. No nosso caso, um tour de 4 dias teve que cabem em 3, por motivos de ônibus quebrado. Assim sendo, não tínhamos muito tempo a perder.

Saímos do acampamento em direção às águas vulcânicas, que ficavam a mais ou menos 20 minutos dali. O sol que nascia lentamente deixava mostrava a mistura de gelo e terra em nosso caminho. Com um cenário desses, e ainda cheios de sono, é de se imaginar a dificuldade em conceber um banho ao ar livre: quem em são consciência vai arrancar suas jaquetas e agasalhos pra encarar uma coisa dessas? Mas assim que chegamos nas piscinas naturais, um ímpeto de coragem tomou conta da Dé e da Mel.

A mistura de terra e gelo, e as cores do começo de dia.

A mistura de terra e gelo, e as cores do começo de dia.

– Vamos? (Dé)
– Vamos! (Mel)
– Vamo, né… (eu, obviamente).

Tiramos a roupa na picape. Minha mãe não acompanhou o furor de juventude, e preferiu se poupar dessa. O caminho do carro até as piscinas é uma coisa que dói na alma – aquele vento frio te corta feito gilete, e você se sente meio imbecil correndo de roupa de banho numa temperatura que você não pensa em enfrentar sem 20 camadas de tecido. Mas ao colocar o pé na água, todo o desconforto vira alegria, e você acaba desacreditando no quão possível é a natureza te entregar mais um presente num ambiente aparentemente tão inóspito.

É isso o que se vê da janela da picape...

É isso o que se vê da janela da picape…

...e mesmo com um mundo de vapor saindo do chão...

…e mesmo com um mundo de vapor saindo do chão…

...é difícil imaginar que essas pessoas não estivessem morrendo de frio.

…é difícil imaginar que essas pessoas não estivessem morrendo de frio.

Aproveitamos aqueles 15, 20 minutos da forma mais plena possível. Obviamente esquecemos a câmera fotográfica no carro, e a mula aqui teve que sair correndo da piscina pro carro, e do carro pra piscina, soltando fumaça de choque térmico numa das cenas mais bizarras e engraçadas da minha vida. Mas registramos, mesmo que precariamente, aquele momento tão divertido. Assim que terminamos nosso banho (que serviu também como banho de fato – mesmo sem sabonete), fomos enfim tomar um café da manhã bacanudo e recompensante na casinha que fica ao lado das piscinas. O sol havia saído e o frio da manhã aos poucos dava lugar a um calor aconchegante. Agora sim estávamos prontos para começar o dia.

Essa foto é tosca, mas me custou uma corrida até a picape numa temperatura bizarra - então, vai pro ar assim mesmo - e não, tirar selfie debaixo de uma nuvem de vapor não dá resultado muito melhor que esse, não :)

Essa foto é tosca, mas me custou uma corrida até a picape numa temperatura bizarra – então, vai pro ar assim mesmo – e não, tirar selfie debaixo de uma nuvem de vapor não dá resultado muito melhor que esse, não 🙂

Depois, é só se trocar ali do lado, e entrar por essa portinha marrom...

Depois, é só se trocar ali do lado, e entrar por essa portinha marrom…

...pra dar de cara com um belo café-da-manhã.

…pra dar de cara com um belo café-da-manhã.

Esse tour tem diversas histórias. Logo mais a gente publica outra 🙂

 

Faniquito, Fofuras

A Dé e o Paul

18 de junho de 2015

De certa forma, é muito fácil escrever o texto de hoje.

É dia 18 de junho, aniversário do Paul McCartney. E como nosso site se propõe a falar de qualquer assunto relativo a viagens, é a primeira vez que o tópico “música” aparece por aqui. Paul McCartney que é de longe um dos sujeitos que mais amamos aqui em casa, e por quem abrimos nossos corações sem nenhuma censura. Um sujeito bacana, levinho e extremamente talentoso, cujo rosto estampa o pôster que está na parede da sala, juntamente de seus outros três amigos. Bobo eu seria se não desse à sua música ou dos Beatles os devidos créditos por viagens constantes, as quais felizmente posso fazer muito bem acompanhado.

Paul aniversaria hoje, e cantou nossa última música enquanto namorados, na manhã do nosso casamento. Por um minuto e quarenta e cinco segundos, “I Will” fez as vezes de calmante para um cara naturalmente nervoso, que precisou travar os dentes para que o coração não saísse pela boca. Naquele mesmo ano de 2010, teríamos a oportunidade de encontrar o ilustríssimo músico inglês – oportunidade que seria única, não tivéssemos cometido a loucura de comprar ingressos (caros, muito caros, ainda mais pra quem havia acabado de comprar um apartamento) para seus dois shows, em dias seguidos. Poucas vezes fomos tão felizes, com duas vezes três horas de uma espécie de hipnose coletiva cantada a plenos pulmões. Viajamos para longe, muito longe… sim, havíamos visto um beatle – de pertinho no primeiro dia, debaixo de chuva e um pouco mais longe no segundo. Cruzamos uma fronteira da vida que para ambos era tão importante quando conquistar novos horizontes, e daquelas duas noites jamais esquecemos.

Uma selfie antes do melhor show das nossas vidas.

Uma selfie antes do melhor show das nossas vidas.

Paul foi o responsável por tortamente adquirirmos um videogame, um controle em forma de bateria, outros de duas guitarras e um microfone, para que por vezes espalhássemos finais de semana caseiros em música que nos remete às nossas vidas. A casa vira taverna. A gente permanece viajando.

Paul é um membro da família, sem a menor dúvida. E pra ele eu deixo meu mais sincero desejo de felicidade plena e eterna – a qual ele certamente terá, dado que sua obra é imortal. E agradeço, por aproximar ainda mais minha pequena de mim. Não haveria escolha mais óbvia e linda para começarmos nossa vida juntos. Uma vida que já tem mais de 7 anos de história. Mas que hoje, seu aniversário, embala novamente o aniversário de outra pessoa, que me permitiu conhecer algo além do quintal de casa (quando minha casa nem quintal mais tinha), e me apresentou o mundo – para o qual passei a escrever há alguns meses por aqui.

Porque hoje Paul, é aniversário da Dé. Que num passado não tão distante me contou num desses churrascos da vida que tinha um sonho pra vida: conhecer Machu Picchu. Naquela época eu sequer imaginava que um dia seríamos os dois uma coisa só lá na frente, e aquele sonho contado de maneira tão distante me parecia coisa mais que difícil de ser feita – eu, devendo os tubos em cheque especial, ela vivendo de aluguel num quartinho na Vila Mariana. O tempo passou, as vidas se trombaram, e um ano depois de “I Will” encerrar nosso namoro e iniciar nosso casamento desembarcávamos no Perú. Não por acaso, a primeira foto do primeiro texto do Faniquito é justamente sobre essa conquista.

Do churrasco a Huayna Picchu foi um longo caminho.

Do churrasco a Huayna Picchu foi um longo caminho.

Foi com ela que eu reaprendi a sonhar (porque sim, meus amigos – eu desconfio dessa gente que é feliz o tempo todo, 24/7), desses sonhos fazer planos, e desses planos montar projetos que virariam viagens, que nos levariam a outros continentes, ou a um show do Paul McCartney. Foi ela que me segurou quando meu pai se foi, e com ela eu imaginei uma vida perfeitamente possível, e totalmente imprevisível, uma vez que sempre fomos o casal improvável. Mas deu tudo certo, e a gente tem muito a celebrar, sonhar,  planejar e viajar ainda.

Faniquito funcionando até em dia de chuva :)

Faniquito funcionando até em dia de chuva 🙂

Por isso, o texto de hoje saiu fácil. Falar daquilo que a gente ama é fácil, e a gente faz isso toda segunda e quinta. Mas hoje, me dei ao direito de falar de QUEM eu amo – e que não por acaso, contextualiza tudo isso de uma maneira muito simples. Parabéns Jinhu (ela é Dé pra vocês, mas Jinhu só pra mim)… e que seus sonhos continuem cada vez mais altos, distantes e coloridos. Eu compro todos, e deles faço questão de fazer parte e contar história por aqui.

Faniquito

Cento e oitenta e três

15 de junho de 2015

É uma semana festiva essa…

Nesse último domingo, o Faniquito completou seus primeiros seis meses de vida. Com este, são 48 os textos publicados desde 14 de dezembro de 2014. E pra nossa satisfação, nesse mesmo domingo atingimos os 800 seguidores em nossa página no Facebook. São apenas números, mas que ainda assim estão muito acima de qualquer pretensão inicial nesse projeto.

Começamos o Faniquito como uma distração. Um lugar onde pudéssemos – eu e a Dé – falar sobre um dos nossos grandes prazeres: viajar e descobrir o mundo. Que pudéssemos por alguns minutos, ou até algumas horas, nos distrair dessa rotina desgastante e destrutiva que vivemos nos dias atuais, e mergulhar em pesquisas, lembranças e planos que envolvessem essa paixão. Uma espécie de fuga, que nos forçaria a incorporar esses momentos (que sempre tivemos desde nossa primeira viagem) ao nosso planejamento diário. Dois textos semanais, em dias definidos: segundas e quintas-feiras. Preferencialmente sendo um meu, um dela – peso esse que a balança não equilibrou ainda, mas quem sabe seja equalizado mais pra frente.

E tem sido muito gostoso viver por aqui. Alguns amigos se juntaram ao projeto, e nos deram o prazer de trazer horizontes que ainda não desbravamos pra essa página, com outra visão e outras percepções – mesmo quando os destinos coincidem. E é muito bom dividir isso tudo, um carinho que ganhamos e que sequer era cogitado quando começamos a pensar esse projeto. Vieram novos adeptos, aproximaram-se outras pessoas, e nos vimos escrevendo pra muita gente, sem sequer sabermos se estávamos preparados pra isso. Esse susto é parte de qualquer empreitada, rumo a um novo destino, e não nos acomodamos em lugares comuns.

Este pequeno registro de hoje é um marco pra gente. E uma forma sutil de agradecer a todo mundo que acredita que a vida se resume a algo mais – e que esse algo mais nunca parece resumível enquanto estamos vivos e podemos descobrir algo novo. Tem sido muito bom isso tudo, e esperamos que vocês estejam aproveitando da mesma forma que estamos. Se possível, nos digam quem são vocês – o que têm achado, o que querem ver, o que não gostam… enfim, nos ajudem a apagar mais velinhas. A vida nunca parece suficiente pra gente fazer tudo o que deseja, mas esse pouquinho aqui tem sido uma experiência muito boa, e dele queremos voar ainda mais alto.

Obrigado mesmo, galera. 🙂

Causos

A vida de um Suíço

11 de junho de 2015

Por Flavio Pucci


Desde que o conheci, carregava consigo um canivete. Um desses suíços que se compra em lojinhas de chineses aqui em São Paulo. Desde essa época até hoje, ele nunca tinha encontrado um bom uso para seu aparato. Já rasgara engradado de cerveja, já abrira diversas garrafas, já rasgou caixas de papelão. Teve uma vez que comprou um que até escrevia, então escreveu algumas linhas.

Na maior parte do tempo, inventava perrengue para usar o maldito. Se ninguém conseguia abrir uma garrafa de cerveja por falta de abridor ou por falta de força, lá vinha ele com um sorriso de canto e um bom motivo para sacá-lo. Quando o fazia, não economizava em tecer predicados ao Suíço.

Muitas vezes o canivete era motivo de chacota. Como um cara, em pleno século XXI, morando na maior cidade da América Latina, precisa de um canivete? “Volta pro mato, seu puto

Nesse vai e vem, se passaram diversos suíços pela sua vida. O com canetinha, o para acampar, para escalar, o de turista. Cada canivete encontrava a sua própria disfunção na cidade grande.

Percebeu então que não adiantava muito comprar canivetes atrás de canivetes. O problema estava na cidade grande. Que vida fútil essa de um Suíço numa metrópole.

A primeira ideia que veio em sua mente era a mais clichê de todas: largar São Paulo, seguir o conselho dos amigos corneteiros e ir para o mato. Escolheu então um pedaço da Bahia, mais especificamente a Chapada Diamantina e passou 40 dias por lá. Até rolou uma empatia, mas não era amor. O Suíço cortou galhos, ajudou em fogueiras, mas ainda se sentia um peixe fora d´água naquelas terras.

Até que, numa tarde de domingo, dessas que nada se espera, a não ser o medo de uma segunda feira cheia de futilidades, ele desceu para Paraty e se deparou, pela primeira vez, com um veleiro. Descobriu que ter um veleiro dava trabalho pra caramba. Que era como ter uma casa cheia problemas clamando por um eterno consertar. Só que, detalhe, consertaria tudo com vistas paradisíacas.

Não teve dúvidas, fechou o negócio na hora. Depois disso se mudou para o veleiro e começou a fazer planos de dar a volta ao mundo. E a vida do Suíço nunca mais foi a mesma. Simplesmente passou a fazer sentido.

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Se você quiser participar das publicações do Faniquito com suas histórias, curiosidades e dicas de viagem (e não importa o destino), é só entrar em contato com a gente por esse link. Todo o material deve ser autoral, e será creditado em nosso site.

Hungria

Terror Háza

8 de junho de 2015

Você está passeando em uma das principais avenidas de Budapeste, quando de longe avista um edifício que se destaca naturalmente. Está em uma esquina. Sua arquitetura é muito bonita e bem preservada (assim como a grande maioria dos prédios da cidade). Porém, o diferencial está lá em cima: uma espécie de letreiro em negativo, que funciona quase como cobertura, e ao mesmo tempo projeta em letras agressivas aquilo que define sua história: TERROR. Estamos falando de Terror Háza, cuja tradução literal é “casa do terror“.

Obviamente, não é um museu comum. É um prédio com mais de 130 anos que serviu como sede da polícia secreta soviética, durante os tempos de ocupação húngara, logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa ocupação durou aproximadamente 40 anos, terminando somente em 1990. Pra quem está de fora e chega em Budapeste, é uma verdadeira overdose de informações aquilo que a cidade oferece em diversos pontos, que misturam o passeio ao ar livre a verdadeiros memoriais. Pode parecer algo pesado, ou “forçado” para nós, que não vivemos esse período (dessa maneira, tivemos nossa ditadura, e todo período de repressão e censura deve ser levado muito a sério), mas é algo natural para os húngaros. O país possui uma história riquíssima e extremamente dolorosa, que permanece viva e aflorada em seu povo. Terror Háza possui três andares e um subsolo que reafirmam essa máxima. Budapeste foi totalmente destruída durante a Segunda Guerra, e sua reconstrução (bem como a de todo o país) mostra a força de todo um povo. Ainda do lado de fora do prédio, um enorme cordão de pequenas fotos de vítimas do regime deixa isso mais evidente.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Logo na entrada do prédio – assim como em sua moldura externa, os dois símbolos principais do regime: as setas, do Partido das Setas Cruzadas (Nyilaskeresztes Párt-Hungarista Mozgalom), que nada mais era do que o partido nazista húngaro, organização fascista que também tinha como alvo os judeus; e a estrela, do ÁVH (Államvédelmi Hatóság), a polícia secreta húngara. Ainda no térreo, um enorme tanque de guerra em cima de uma piscina de óleo, rodeado de fotos de prisioneiros do prédio deixa claro que o passeio não será para estômagos fracos.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

O tour é feito de cima para baixo, começando portanto pelo último andar. Após a transformação do prédio em museu, as salas foram transformadas em sessões históricas, que narram cronologicamente o período de dominação do país pelas organizações fascistas e comunistas citadas logo acima. Existe todo um aparato áudio-visual que transforma cada setor em uma experiência intensa – por vezes claustrofóbica, outras de esperança, empatia, de dor e sofrimento, e num conjunto geral algo que você acaba levando debaixo da pela quando sai dali.

A primeira sala mostra como a Hungria teve seu território fragmentado, ocupado, desocupado e reagregado por uma dezena de vezes. Essa história divide espaço com filmes da época, que mostram a ocupação nazista antes da chegada dos soviéticos. Telefones nas paredes transmitem mensagens de rádio daquele período, dependendo do número que você escolha discar. Um enorme carro preto dá a impressão que vai te sequestrar assim que as luzes se apagam e o som abafa.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

O passeio segue, por corredores de letras metálicas, que levam a uma sala de reunião onde estão expostos na parede os uniformes dos oficiais do exército e do serviço secreto. Novamente, telefones trazem pronunciamentos e gravações da época (todos em húngaro). Dali adiante existe uma espécie de vestiário, onde dois manequins com uniformes giram ao centro. Na sala ao lado, pequenas mesas de interrogatório.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

Uma sala ampla, com um enorme mapa impresso no carpete, guarda em cones metálicos invertidos alguns ítens carregados por soldados, sobreviventes e prisioneiros durante o período. Nas paredes, esses mesmos personagens e suas famílias se revezam contando suas histórias. Sem a menor dúvida, uma das instalações mais densas e dramáticas do museu.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

Pouco adiante, cabines com propagandas políticas da época, escondidas sob cortinas vermelhas e imagens de Stalin. O discurso, todos sabemos, é sobre a excelência do poder, e “seu reflexo no bem-estar da população”. Na mesma sala, uma verdadeira parafernália mostra o quão complexa era a ação de espionagem naquela época. Novamente, telefones e pequenos aparelhos de áudio trazem mensagens gravadas. A seguir, uma pequena sala, com bens de Stalin e de alguns membros do seu partido.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

Em outro espaço, uma especie de labritinto feito com tijolos de sabão faz com que o visitante se perca numa imensidão branca, terminando seu passeio em uma cela. Próximo dali, uma instalação com diversos utensílios, que mais parece uma cozinha gigante prateada, expõe todo o tipo de produção operária feita pelos prisioneiros – de marmitas a panelas, de ferramentas a objetos decorativos.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

Uma espécie de auditório, montado com folhas de jornal do chão ao teto, faz alusão à censura da época, com uma sala secreta repleta de escutas escondida na parede direita. Seguindo dali, damos numa espécie de galpão, com uma enorme cruz luminosa no chão. Nas paredes, objetos sacros e vestimentas de bispos, escancarando o comprometimento religioso ao regime da época.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

O passeio termina no subterrâneo do prédio, onde estão as áreas de maior impacto. Um enorme memorial, de luzes vermelhas e cruzes metálicas representa um pequeno número dos milhares de mortos naquele lugar. Diversas armas estão expostas perto dali, e a baixa iluminação te aproxima ainda mais dessa sensação de agonia.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

Perto dali, alguns televisores contam histórias de pessoas que perderam familiares naquele local. Uma bicileta exposta, roupas penduradas, objetos de operários e um enorme carrinho repleto de pedras ilustram essas histórias (todas em húngaro, com legendas em inglês). E eu confesso que saí dali chorando.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Num último corredor, o acesso às celas e solitárias de quem teve sua vida sentenciada em Terror Háza. Não há nenhum aparato de som, sendo as instalações fiéis ao que eram na época: cubículos cercados, alguns com uma espécie de cama ou colchão, salas de tortura e até mesmo uma forca. Algumas televisões em determinados pontos mostram esses mesmos lugares no momento em que foram encontrados – seu estado de podridão e desumanidade. É chocante.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

Terror Háza é uma visita obrigatória em Budapeste. Reserve uma manhã, faça uma refeição leve e prepare o coração. Não há glamour nem diversão num passeio tão intenso, mas o que se leva dali é muito mais do que um souvenir (que sim, existe – eu inclusive tenho um aqui, na minha mesa): a gente aprende muito sobre o ser humano, e o quanto ele é capaz de ir do mais baixo ao mais grandioso. E nenhum livro de História é capaz de botar essas lições na sua cabeça com tanta ênfase quanto um sobrevivente desse período maldito na história da humanidade.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Fotos no interior do museu são proibidas. Por isso mesmo quase todas as fotos deste texto foram retiradas do site oficial de Terror Háza. Apesar disso, você encontra mais fotos de lá numa rápida busca pelo Google. É que a gente também faz apologia ao turismo respeitoso – e não ao sem-noção. Porém, encontramos uma galeria de panorâmicas (autorizada e bonitinha) que permite um passeio lá dentro, e dá pra ver alguns desses ambientes bem de pertinho. Acesse aí: http://www.panoramablog.eu/media/budapest/terrorhaza/terrorhaza.html