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Bolívia

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O azul mais azul do Titicaca

15 de março de 2016

O ônibus ia de Copacabana a La Paz, por um caminho que mal conhecíamos (mas que de tão bonito, será abordado num texto só pra ele). Num determinado momento, ele parou. Tínhamos que descer, e já esperávamos por algum problema mecânico ou coisa do tipo – apesar do aparente bom estado do veículo, não seria nenhuma surpresa. Não era um problema, e sim um obstáculo. Surpresa sim, mas a melhor possível: atravessaríamos o Lago Titicaca de barquinho.

Não lembro se era manhã ou tarde. Estava um belo de um sol, mas o vento que bate naquela região é gelado de verdade. Enquanto aguardávamos o barquinho chegar, um esclarecimento necessário: minha mãe nunca tinha andado de barco, e além disso não sabe nadar. Havia uma expectativa quanto à reação dela, que seria confirmada ou desmentida na sequência. Compramos os bilhetes (sim, porque a surpresa ia além, e o tal barquinho não fazia parte do custo total do passeio – só pra reafirmar a importância de, durante uma viagem, ter sempre um dinheirinho no bolso pra possíveis ocorrências). O barquinho chegou.

Se você pensa que tudo hoje em dia é digital...

Se você pensa que tudo hoje em dia é digital…

Um pequeno atracadouro, onde esperamos nosos barquinho.

Um pequeno atracadouro, onde esperamos nosos barquinho.

Pra que possamos entender o azul que dá título ao texto, essa é apenas uma ideia. Bovamente, as fotos não fazem jus.

Pra que possamos entender o azul que dá título ao texto, essa é apenas uma ideia. Bovamente, as fotos não fazem jus.

Entramos um a um, e antes de sair colocamos os coletes salva-vidas. Minha mãe ficou razoavelmente aliviada com o acessório. Puxamos as máquinas fotográficas, enquanto mais algumas pessoas entravam. Os locais aparentemente não precisavam ou não queriam os coletes, e se posicionaram de pé mesmo. Não sabíamos o quão certo aquilo tudo estava, mas sem saída, confiamos no que estava por vir. O velhinho ligou o motor e partimos para a travessia.

Todos à bordo, com ou sem colete...

Todos à bordo, com ou sem colete…

...era hora de preparar a máquina fotográfica e mandar aquele hang loose pra Jesus.

…era hora de preparar a máquina fotográfica e mandar aquele hang loose pra Jesus.

Um barquinho pequeno, mas honesto, e a velha mãe se deixou levar pelo momento. Era muito difícil se deixar amedrontar por tanta beleza. Com a cordilheira mais adiante, a travessia entre os dois vales servia de moldura pra um azul profundo daquele mundo de água gelada. O Titicaca é um dos pedaços mais bonitos da Bolívia, numa paisagem com gosto de América do Sul. Foram apenas alguns minutos, mas cuja memória ainda é cristalina.

Nosso comandante...

Nosso comandante…

...naquele tapete azul.

…naquele tapete azul.

Seguiram-se alguns minutos de total tranquilidade e beleza.

Seguiram-se alguns minutos de total tranquilidade e beleza.

Pra dentro das cores da água do Titicaca :)

Pra dentro das cores da água do Titicaca 🙂

Na chegada, fomos recebidos por uma alpaca muito da simpática. O susto passou, dando lugar à celebração de mais um momento bacana.

Um sorriso na chegada...

Um sorriso na chegada…

E três (ou quatro) sorrisos como resultado de um passeio tão bacana.

E três (ou quatro) sorrisos como resultado de um passeio tão bacana.

É assim mesmo: a gente planeja saída e destino, e fica sujeito a tudo o que acontece pelo caminho. Pode dar numa baita de uma dor de cabeça, pode dar num dia como esse, onde o azul deu o tom.

Bolívia

A verdadeira Copacabana

3 de novembro de 2015

Durante nossa passagem pela Bolívia, havia um buraco em nosso planejamento, chamado Copacabana. Aos desavidados, não é um lapso geográfico: acreditem – a cidade boliviana de Copacabana deu nome ao bairro carioca mais famoso do mundo. Está na Wikipédia que “no século XIX, uma réplica local da imagem de Nossa Senhora de Copacabana foi levada por comerciantes espanhóis ao Rio de Janeiro, no Brasil, onde foi criada uma pequena igreja para abrigá-la. A igreja cresceu e acabou por nomear o atual bairro de Copacabana.”

Voltando à nossa experiência: não havíamos planejado absolutamente NADA para a cidade. Como chegar, onde ficar e o que fazer seriam decididos no meio do caminho, e assim foi feito. Ao contrário do nosso relato anterior dessa mesma viagem sobre transportes traumáticos, tivemos a mais agradável das experiências com nosso veículo, cujo trajeto consistia na saída de Cusco (talvez a explicação para tamanha diferença seja a origem peruana do ônibus), uma pausa em Puno (onde muita coisa aconteceu – mas o que acontece em Puno fica em Puno, e em nossas memórias), e de lá a travessia do país até a chegada em Copacabana. Viajamos num semi-leito gostosíssimo, carimbamos os passaportes num lugar bem sossegado e pouco depois desembarcamos na cidadezinha. Um táxi nos levaria ao nosso albergue, localizado poucas quadras adiante.

Nada de Rio de Janeiro: estávamos à caminho da Copacabana original.

Nada de Rio de Janeiro: estávamos à caminho da Copacabana original.

Nada de surpresas também: dessa vez dava pra confiar no ônibus...

Nada de surpresas também: dessa vez dava pra confiar no ônibus…

...e ainda contemplar o Lago Titicaca da janela.

…e ainda contemplar o Lago Titicaca da janela.

Uma explicação rápida sobre o que não será explicado:

Nosso principal intuito na chegada a Copacabana era DESCANSAR. Estávamos emocionalmente exaustos com um desgaste totalmente inesperado que tivemos DURANTE a primeira parte de nosso trajeto, e precisávamos de boas horas de paz e tranquilidade – coisas que são essenciais para que uma viagem valha a pena e deixe saudades, e não cicatrizes. Detalhes sobre o que aconteceu, com quem e seus resultados dizem respeito a quem estava lá, e somente a essas pessoas. Por isso mesmo, pedimos desculpas por essa lacuna.

Copacabana é mais conhecida como ponto de partida para a ilha do Sol – um território inca bastante conhecido, e que movimenta a economia local com o turismo pela região. A cidade em si é minúscula, contando com aproximadamente seis mil habitantes. Sua geografia consiste em ladeiras bastante impiedosas, poucas ruas e simpáticas casinhas de cor terrosa.

Uma cidadezinha cheia de ladeiras.

Uma cidadezinha cheia de ladeiras.

E imagino que possamos dizer que essa é "a verdadeira praia de Copacabana", não?

E imagino que possamos dizer que essa é “a verdadeira praia de Copacabana”, não?

Acabamos não visitando a ilha do Sol, por naquele momento priorizarmos outra coisa – ficaríamos pouco mais de um dia na cidade, e tudo o que queríamos era esvaziar a cabeça e aproveitar aquele novo momento de verdadeiro alívio antes da segunda parte de nossa viagem. Por isso mesmo, pouco após nos instalarmos, fomos passear um pouco pela cidade e comer alguma coisa. Acabamos em um dos diversos restaurantes que oferecem o prato típico da cidade – a truta. Com direito a sucos enfeitados com simpáticos guarda-chuvinhas, celebramos o novo momento com o sugerido peixinho.

Se a principal oferta gastronômica é a truta...

Se a principal oferta gastronômica é a truta…

...que venha a truta, oras.

…que venha a truta, oras.

Mais uma breve caminhada pela cidade, e nos separamos: minha mãe resolveu tirar uma soneca da tarde, enquanto eu, a Dé e a Mel encaramos um mini-trekking. A ideia era subir o Cerro Calvario (que nome mais sugestivo, não?), e ver o pôr-do-sol lá de cima. Consiste num caminho de cunho religioso – que justifica o nome da colina, pois existem 14 pontos que remetem à via crucis. Seu início era bem próximo à saída do nosso albergue, e calmamente fomos subindo até a chegada lá no topo.

Paquinha se recolheu aos novos aposentos.

Paquinha se recolheu aos novos aposentos.

Nós resolvemos encarar a subida. E que subida, amigos.

Nós resolvemos encarar a subida. E que subida, amigos.

Logo de cara, a primeira...

Logo de cara, a primeira…

...das várias cruzes que compõem o caminho do Cerro Calvario.

…das várias cruzes que compõem o caminho do Cerro Calvario.

Era uma tarde fria e linda.

Era uma tarde fria e linda.

Pelo caminho, diversos agradecimentos...

Pelo caminho, diversos agradecimentos…

...e demonstrações de devoção à Nossa Senhora de Copacabana.

…e demonstrações de devoção à Nossa Senhora de Copacabana.

Já durante a subida, uma visão espetacular nos aguardava. Fazia frio, mas não a ponto de nos intimidar. Mesmo íngreme em alguns pontos, é um caminho relativamente tranquilo de ser feito. Os poucos obstáculos estão na parte final da subida, com um caminho de pedras que deve ser feito com cuidado. Nada que assuste ou afaste os curiosos – a recompensa na chegada ao topo faz valer o risco.

Uma subida tranquila...

Uma subida tranquila…

...feliz...

…feliz…

...e pacífica. Como nossa viagem - e Copacabana - mereciam.

…e pacífica. Como nossa viagem – e Copacabana – mereciam.

Devagar e com toda essa tranquilidade, chegamos lá em cima.

Devagar e com toda essa tranquilidade, chegamos lá em cima.

A sequência do Calvário era repetida em lá em cima.

A sequência do Calvário era repetida em lá em cima.

Enquanto a visão da baía se misturava às velas dos devotos.

Enquanto a visão da baía se misturava às velas dos devotos.

Lá embaixo, a cidade aos poucos se iluminava. Um belíssimo final de tarde.

Lá embaixo, a cidade aos poucos se iluminava. Um belíssimo final de tarde.

Nossa breve estada na cidade proporcionou o descanso desejado com sobras: no dia seguinte, um café da manhã tão aconchegante quanto as redes no quintal, o dia de sol combinado ao vento gelado que vinha da cordilheira dos Andes, e até mesmo o silêncio de uma cidade pequena como a que estávamos foi a combinação perfeita àquilo que desejávamos em nossa passagem por Copacabana.

Um novo dia.

Um novo dia.

Um merecido descanso...

Um merecido descanso…

...e os Andes logo adiante, nos recebendo, para dias melhores que viriam a seguir.

…e os Andes logo adiante, nos recebendo, para dias melhores que viriam a seguir.

Se vale uma dica: não se prenda às obrigações turísticas que certos locais oferecem (e às vezes, significam – de tal maneira que “estar lá” é sinônimo de fazer A, B ou C). Não termos ido à ilha do Sol não fez diferença em nossa viagem, simplesmente porque queríamos outra coisa naquele momento. Tivemos, e dali em diante cair na estrada ganhou outro significado – muito melhor, mais leve e feliz. Em Copacabana, a paz foi nosso maior presente.

Bolívia, Causos

F****.

8 de outubro de 2015

Estávamos viajando pela Bolívia, e nosso próximo deslocamento seria de La Paz para Tupiza. Obviamente comprar uma passagem de ônibus em La Paz é uma experiência bem diferente do que fazê-lo no Terminal Tietê, por exemplo: não espere guichês organizados e garantias de que aquilo que você vê na foto é o que de fato você recebe. Mas é claro que não sabíamos de nada disso.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Então fomos até a rodoviária, comprar as tais passagens. Chegando ao guichê, um homem todo prestativo nos ofereceu um ônibus bacana, com ar condicionado e conforto. Tem banheiro? Não, mas o ônibus fará três ou quatro paradas em alguns hotéis pelo caminho. Nos parecia uma boa, e compramos nossos quatro bilhetes por preços bem cabíveis, felizes da vida.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Tudo pronto para a viagem – seriam aproximadamente 10 horas de ônibus, e sairíamos no meio da noite. Assim, com bancos reclinados, dormiríamos até a manhã seguinte, quando chegaríamos a Tupiza. Colocamos as malas no bagageiro do ônibus, e ao subir a escada percebemos o tamanho do buraco em que havíamos nos metido: os ônibus bolivianos que havíamos pegado até então já não eram lá essas coisas, e esse parecia “especialmente pior”, a começar pela pintura bizarra de uma espécie de Professor Girafales Seresteiro que embelezava seu exterior. Lá dentro, apenas bolivianos, que em nada lembravam turistas – pareciam locais indo para o interior, mais ou menos como se fosse uma viagem de São Paulo a Vitória feita no ônibus mais barato – e boliviano. As pessoas não queriam pagar para despachar suas bagagens, e em pouco tempo o interior do veículo virou uma zona: mantas, malas enormes, e em alguns quilômetros, uma parada providencial para que a maioria dos passageiros comprasse cada um seu frango, feito na rua e bastante cheiroso – é bom dizer – mas imaginem um ônibus cheio de gente comendo frango.

As poltronas eram esquisitas, as janelas não fechavam direito, e obviamente não existia nenhum ar condicionado naquele pardieiro. A noite avançava, e a vontade de ir ao banheiro surgiu na minha mãe. Esperávamos a chegada ao primeiro hotel, quando o ônibus pára no meio da estrada. Um breu. Ela, apertada, desce pra ver onde rolaria o tal xixi. A Dé acompanhou a sogra, num gesto de grandeza e inconsequência. Me contou depois que os “banheiros” eram num descampado, cujos azulejos possuíam cor e tons extremamente suspeitos. As cholas que desceram do ônibus para o mesmo fim simplesmente se agachavam e levantavam um pouco as saias. Ao término, ajeitavam a roupa e voltavam pro ônibus. Não vi nada disso. Não temos fotos. Sou extremamente grato por isso, pois imagino que a experiência tenha sido algo desse tipo:

Veio a madrugada. Eu estava numa janela, minha mãe na janela oposta. Nas poltronas do corredor, a Dé e a Mel. Entrava um vento gelado pelas frestas das janelas, que não nos deixava dormir de jeito nenhum. Disseram-me que havia gente deitada no corredor, dormindo ali mesmo, e eu não duvido nem um pouco. A noite foi longa e terrível, mas assim que amanhecesse chegaríamos ao nosso destino e todo esse pesadelo acabaria. O sol surgiu, e entramos numa área de deserto. Sentia que estava acabando.

Sentia, quando o ônibus quebrou.

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

E não quebrou pouco. Um problema no eixo, que nos estacionou no meio do nada. Esperamos do lado de fora, enquanto o motorista tentava consertar aquela desgraça. Nosso tour para Uyuni sairia de Tupiza às 14h, e os nervos estavam mais quentes que aquela areia toda. Algum/muito tempo depois, pediram para que subíssemos. O ônibus partiu, com barulho de coisa quebrando, e numa velocidade inferior a qualquer bicicleta que por um acaso se perdesse por lá.

Assim seguimos por algum tempo, até chegarmos num vilarejo completamente inexplicável: Santiago de Cotagaita. Consistia numa rua de terra, com duas ou três esquinas, uma agência da Western Union e alguns “restaurantes”, com aspas mesmo. Descemos, e o motorista levou o ônibus mais à frente para o conserto. Aparentemente um acaso comum, pois todos os outros passageiros pareciam perfeitamente conformados com a situação, e de lá resolveram almoçar naquele fim de mundo. Eu queria explodir. Não lembro quem pediu comida – se as três ou não. Sei que não comi nada, e estava espumando de raiva daquilo tudo: da promessa do cara que me vendeu, e do quanto eu havia sido otário em acreditar. Nada do ônibus ficar pronto. Era notório que havíamos perdido a saída do nosso tour, e isso só aumentava nossa dor.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à direita.

Cotagaita à direita.

Um molequinho brincava feliz no meio daquela poeira toda. A sensação era de estarmos esquecidos no meio do nada. Não tínhamos dinheiro em espécie, e não tínhamos como conseguir uma grana naquele cafundó. Era desesperador. As horas passavam, olhávamos pro fim da rua, e nada do ônibus aparecer. Estávamos pagando nossos pecados, com juros e suor. Meu humor já tinha acabado há tempos, e eu estava absolutamente intratável.

Eu, procurando meu humor.

Eu, procurando meu humor.

Alguém feliz.

Alguém feliz.

Não sei quanto tempo levou, mas ver o ônibus voltando foi um alento.

Entramos, e ele seguiu entre primeira e segunda marchas. Uma nova quebra era iminente, mas tentávamos acreditar que apesar de tudo aquilo, conseguiríamos chegar. Na única TV ali dentro passava um VHS, com uma festa local tocando cumbia. Tentávamos descontrair, mas era difícil. Devagar e sempre, o ônibus seguiu adiante, e chegamos a Tupiza por volta das 16h (sendo que saímos de La Paz às 20h do dia anterior… sim: VINTE HORAS DE VIAGEM PELO INFERNO). Dali em diante as coisas dariam certo – mesmo dando errado, como deram.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

Já se vão 4 anos dessa via crucis, e hoje a gente lembra dessa história e dá risada. Portanto, valorize seu ar condicionado, seu banheiro limpinho, sua janela vedada, seu carro motor mil e seu sofá da sala: nunca se sabe quando seu trajeto pode te jogar em Santiago de Cotagaita.

Bolívia, Perú

Wiphala e as cores do arco-íris

29 de junho de 2015

Aproveitando a deixa de sexta-feira, onde num momento histórico os Estados Unidos aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o país, e dessa decisão uma verdadeira avalanche de arco-íris tomou conta das redes sociais (avalanche essa da qual o Faniquito também participou, óbvia e orgulhosamente), o texto de hoje trata de uma outra bandeira, muito semelhante em sua forma e cores, mas pouco conhecida em território nacional: a Wiphala.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Tivemos nosso primeiro contato com ela durante nossa viagem para o Perú e Bolívia – que juntamente com o Equador, possuem no povo andino a raíz de sua civilização. A cultura andina é exaltada por esses povos, das maneiras mais diversas. Em nossa passagem pelos principais sítios arqueológicos peruanos, nossos guias contavam com orgulho como o povo andino conseguiu camuflar seus ideais e credos em obras europeias, imagens trazidas de fora, e uma série de outros artifícios durante a colonização espanhola. Dessa forma, os andinos conseguiram manter a história de seus antepassados, trazendo adiante uma herança que nós, brasileiros, perdemos com a colonização portuguesa: nossa população nativa foi dizimada, e não sabemos absolutamente nada sobre nossa verdadeira história.

Tendo em vista nossa evolução econômica e o tamanho de nosso território, pode parecer besteira para alguns o resgate desses valores. Mas fato é que o povo andino possui um sentimento nacionalista muito mais forte do que qualquer patriotismo oportunista que costumamos cultivar (principalmente em anos de Copa do Mundo), e um mínimo contato com essa cultura engrandece nossa percepção da riqueza que a história latino-americana possui. E quanto a ela pertencemos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A Wiphala está presente em praticamente todo o território desses três países, comumente ladeando a bandeira nacional – nem sempre em seu formato mais conhecido, quadrado e quadriculado, e sim em faixas representando as cores do arco-íris. Algumas partes do território argentino, chileno e colombiano também possuem população andina, o que populariza ainda mais o símbolo na maioria dos países sul-americanos. Em 2007, a nova constituição boliviana incluiu a Wiphala oficialmente como símbolo pátrio.

Confesso que me senti meio alienado quando vi a Wiphala pela primeira vez, e minha reação óbvia foi “que raio de bandeira é essa?”. Pela quantidade (e disposição) de suas cores, ela é facilmente confundível com a bandeira gay, e isso foi o que mais me chamou a atenção naquele momento. E aquilo me incomodou – não a coincidência, mas sim o fato de eu, sul-americano que sou, nunca ter ouvido falar dela.

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

Acho que a ignorância incomoda naturalmente. Se não o faz, deveria. Desconhecer algo que não faz parte do nosso dia-a-dia deveria despertar a curiosidade. Imergir um pouco na cultura andina (e fizemos isso por algumas vezes, tanto no Perú como na Bolívia) nos trouxe um respeito muito grande por esses povos, sua luta, e um esclarecimento lamentável pela forma como foram massacrados. Às vezes a gente bate naquilo que não conhece, e desmerece quem por algum motivo escolhe caminhos que não os nossos. Foi assim com os andinos. É assim com quem luta todo dia contra o preconceito. Que essas cores, que tanto alegram a gente em dias de chuva e sol, esclareçam de uma vez o quanto o mundo pode ser melhor quando a gente aprende a respeitar – e não massacrar – a bandeira alheia.

Bolívia

Um banho quente

23 de junho de 2015

Nesses dias gelados, me veio à mente uma recordação pertinente ao Faniquito.

Não havia nascido o Sol quando o guia nos chamou. Um frio monumental, da gente não ter coragem de tirar o cobertor. No meio do deserto faz ainda mais frio, e nosso tour em Potosí estava apenas em seu segundo dia. Havíamos lido relatos escabrosos sobre o alojamento em que ficamos durante a noite anterior, e sobre o frio que o acometia: “quase tive um edema“, foi a frase mais chocante que lemos, e que viraria uma piada dali em diante… afinal, as paredes eram bem sólidas, e havia um corredor (fechado e bem protegido) que separava o exterior dos nossos quartos. As camas não eram um primor, mas longe de serem desconfortáveis a esse ponto, e as mantas eram suficientemente grossas e pesadas pra proteger qualquer ser humano daquela temperatura.

Ainda sem sol, mas com uma paisagem que vale acordar cedo.

Ainda sem sol, mas com uma paisagem que vale acordar cedo.

Não tomamos banho, pois era impossível. A energia do lugar estava desligada, e o chuveiro não esquentava. Escovar os dentes já era desafio suficiente, mas que aceitamos. Pessoas com dentes sensíveis não devem fazer o mesmo, pois a água de fato é geladíssima. Poucos minutos depois estávamos prontos pra levantar acampamento. O café da manhã não seria ali.

O tour pelo Salar de Uyuni – a maior planície de sal do mundo – leva normalmente de 4 a 6 dias. Entre as diversas áreas do parque (que estarão por aqui em textos futuros, inclusive falando do próprio Salar), existem esses acampamentos. Assim como acontece no Atacama – vizinho ao Uyuni, no Chile, é impossível visitar tudo em somente um dia. No nosso caso, um tour de 4 dias teve que cabem em 3, por motivos de ônibus quebrado. Assim sendo, não tínhamos muito tempo a perder.

Saímos do acampamento em direção às águas vulcânicas, que ficavam a mais ou menos 20 minutos dali. O sol que nascia lentamente deixava mostrava a mistura de gelo e terra em nosso caminho. Com um cenário desses, e ainda cheios de sono, é de se imaginar a dificuldade em conceber um banho ao ar livre: quem em são consciência vai arrancar suas jaquetas e agasalhos pra encarar uma coisa dessas? Mas assim que chegamos nas piscinas naturais, um ímpeto de coragem tomou conta da Dé e da Mel.

A mistura de terra e gelo, e as cores do começo de dia.

A mistura de terra e gelo, e as cores do começo de dia.

– Vamos? (Dé)
– Vamos! (Mel)
– Vamo, né… (eu, obviamente).

Tiramos a roupa na picape. Minha mãe não acompanhou o furor de juventude, e preferiu se poupar dessa. O caminho do carro até as piscinas é uma coisa que dói na alma – aquele vento frio te corta feito gilete, e você se sente meio imbecil correndo de roupa de banho numa temperatura que você não pensa em enfrentar sem 20 camadas de tecido. Mas ao colocar o pé na água, todo o desconforto vira alegria, e você acaba desacreditando no quão possível é a natureza te entregar mais um presente num ambiente aparentemente tão inóspito.

É isso o que se vê da janela da picape...

É isso o que se vê da janela da picape…

...e mesmo com um mundo de vapor saindo do chão...

…e mesmo com um mundo de vapor saindo do chão…

...é difícil imaginar que essas pessoas não estivessem morrendo de frio.

…é difícil imaginar que essas pessoas não estivessem morrendo de frio.

Aproveitamos aqueles 15, 20 minutos da forma mais plena possível. Obviamente esquecemos a câmera fotográfica no carro, e a mula aqui teve que sair correndo da piscina pro carro, e do carro pra piscina, soltando fumaça de choque térmico numa das cenas mais bizarras e engraçadas da minha vida. Mas registramos, mesmo que precariamente, aquele momento tão divertido. Assim que terminamos nosso banho (que serviu também como banho de fato – mesmo sem sabonete), fomos enfim tomar um café da manhã bacanudo e recompensante na casinha que fica ao lado das piscinas. O sol havia saído e o frio da manhã aos poucos dava lugar a um calor aconchegante. Agora sim estávamos prontos para começar o dia.

Essa foto é tosca, mas me custou uma corrida até a picape numa temperatura bizarra - então, vai pro ar assim mesmo - e não, tirar selfie debaixo de uma nuvem de vapor não dá resultado muito melhor que esse, não :)

Essa foto é tosca, mas me custou uma corrida até a picape numa temperatura bizarra – então, vai pro ar assim mesmo – e não, tirar selfie debaixo de uma nuvem de vapor não dá resultado muito melhor que esse, não 🙂

Depois, é só se trocar ali do lado, e entrar por essa portinha marrom...

Depois, é só se trocar ali do lado, e entrar por essa portinha marrom…

...pra dar de cara com um belo café-da-manhã.

…pra dar de cara com um belo café-da-manhã.

Esse tour tem diversas histórias. Logo mais a gente publica outra 🙂

 

Bolívia

Coca: a polêmica

14 de maio de 2015

Desde aquela fatídica eliminatória em 1993, quando perdemos nossa primeira partida na história da competição para a Bolívia, ouvimos falar com insistência do quanto a altitude de La Paz castiga. Em tempos de Taça Libertadores da América, tomes que apanham por 5 ou 6 gols quando jogam fora da cidade costumam vencer por lá. Atletas profissionais, com seu preparo físico indiscutível, passam mal na beirada do campo, apelando por vezes para pequenos balões de oxigênio.

Exagero? Nenhum.

La Paz (ou Nuestra Señora de La Paz) é uma cidade localizada a uma altitude de 3.640 metros acima do nível do mar: um verdadeiro desafio para o corpo humano, pois a concentração de oxigênio nesses termos é ridícula, e respirar passa a ser um desafio. Pra isso, existe um remédio local que ainda causa um mundo de curiosidade para quem não visitou a cidade: as folhas de coca. Também encontradas em outros lugares – inclusive no Perú, mais especificamente em Cusco, é um pré-requisito e uma ferramenta natural de sobrevivência. E esse texto breve é para matar algumas dúvidas a respeito dessa peculiaridade:

Você fica doidão mascando a danada?

– Não. Por sinal, não é a sensação mais agradável do mundo mastigar uma folha seca. Tem gosto de… folha seca. Apesar de estar ruminando um pedaço de mato, é comestível, suportável, e após algum tempo você se habitua.

Mas é dela mesmo que se faz a cocaína, né?

– Aham. Seu noia.

O chá você encontra à venda em quase todo lugar, mas bebe de graça em quase todo lugar também.

O chá você encontra à venda em quase todo lugar, mas bebe de graça em quase todo lugar também.

Quanto eu preciso pra altitude não me castigar?

– O consumo da folha de coca na Bolívia é extremamente natural, normal e corriqueiro. Existem cestinhas espalhadas em albergues (possivelmente em hotéis também), assim como o chá, que é encontrado em todos os cantos da cidade – para beber ou comprar os pacotinhos, por preços irrisórios. Fizemos um tour, e os guias levavam um saco cheio de folhas no carro – para consumo próprio e nosso, que foi bastante necessário. O efeito que a coca causa é a expansão dos alvéolos pulmonares, ou seja, ela aumenta a capacidade pulmonar de absorção de oxigênio, o que ajuda a equalizar o efeito de desconforto causado pela altitude.

Existe esse efeito todo mesmo? Não é frescura?

– Frescura nenhuma. A cidade de La Paz é composta de ladeiras bastante íngremes, e a geografia da cidade e arredores é montanhosa – vezes pra cima, vezes pra baixo. Seus pulmões são exigidos o tempo todo, e sob tais condições atmosféricas, a não-compensação causa falta de ar, tontura, sono e enjôo – tudo isso dependendo do quanto de esforço está sendo feito.

Ladeiras de verdade, longas e íngremes. Haja pulmão.

Ladeiras de verdade, longas e íngremes. Haja pulmão.

Os bolivianos passam mal como a gente?

– Não, pois nasceram ou viveram por muito tempo durante essas condições, e seus corpos se habituaram a tais condições. Assim como o esquimó é capaz de reconhecer muitos tons de branco devido à vida na neve, a altitude não é um problema para os habitantes de La Paz. Eles tomam chá como se fosse o nosso chá preto, e consomem folhas quando viajam para locais ainda mais altos.

Dá pra trazer o chá pro Brasil?

– Dá. Mas a gente resolveu não arriscar, pois se tem um bicho complicado de se entender é fiscal de alfândega. Macaco gordo não sobe em galho.

E não, não dá pra jogar futebol em La Paz. Apesar das criancinhas da foto me desmentirem (por motivos apontados no penúltimo ítem).

Esqueça: seu time não ganha se jogar em La Paz.

Esqueça: seu time não ganha se jogar em La Paz.

Esqueça qualquer relação com as drogas: folha de coca é legal sim, é necessária sim, e se você for pra Bolívia (e vá, porque vale a pena, logo mais a gente conta os porquês) você vai mascar sim. Seu corpo agradece, seu pulmão mais ainda.