Tailândia

O rei está morto. Vida longa ao rei.

22 de novembro de 2016

Viajar por mais de 24 horas, chegar ao seu destino, e descobrir que o rei morreu. Rei esse que não era apenas um rei, mas uma semi-divindade aos olhos da população; que reinou por sete décadas; que você nunca ouviu falar, mas que num contexto geral deixa claro que sua visita não será exatamente aquilo que você imaginava. Assim começa nossa viagem/saga pelo Sudeste Asiático.

Num fuso horário de 11 horas, recebi de uma amiga pouco antes de dormir a notícia de que Bhumibol Adulyadej tinha batido as botas no exato momento em que deixávamos o aeroporto. Não é das coisas que o taxista ou a recepcionista do hotel te contam, e depois de atravessar o mundo a última coisa que você quer é ligar a televisão. Saímos para comer alguma coisa, ainda perdidos, e ao voltarmos ao hotel fomos direto pra cama. Foi nessa hora que o whatsapp chegou.

Acabamos acordando muito cedo na manhã seguinte, e nessa hora contei pra Dé sobre a morte do dito. Nossa primeira manhã em Bangkok seria bastante atípica (mas essa história contamos mais pra frente), sendo que nossa agenda só seria cumprida lá pela metade da tarde*. Voltamos para Ratchadamnoen Klang Rd, uma das principais avenidas do distrito de Phra Nakhon, muito próxima ao nosso hotel. Com as opções de voltar ao dito ou dar mais uma passeada pelos arredores, escolhemos a segunda. E dali em diante nossa ficha caiu.

A intenção era chegar ao Grand Palace, pois ainda era meio de tarde e a visitação estaria aberta – um raciocínio completamente torto, dado o acontecimento da noite anterior. O rei seria velado justamente no Grand Palace, e não fazíamos ideia do que havia se passado na cidade durante aquela manhã. Mas agora que estamos em casa, dei uma busca rápida no YouTube pra encontrar o que a gente perdeu (e o que explicaria o cenário que encontraríamos logo mais):

Caminhando em direção ao nosso destino, uma horda de MILHARES de pessoas vinha chegando na direção oposta. E quando digo milhares, acho que uma imagem vale mais do que qualquer ênfase que esse texto possa tentar transmitir.

Não era o show do Ozzy, mas parecia.

Não era o show do Ozzy, mas parecia.

E quando eu digo que não dava pra passar, não dava mesmo.

E quando eu digo que não dava pra passar, não dava mesmo.

Prosseguimos um pouco mais, imaginando que aquilo talvez fosse “uma onda” de gente, mas a cada avanço a multidão se tornava mais e mais compacta. O acesso aos templos posteriores seria impossível. Em determinado momento paramos, e vencidos começamos a retornar, acompanhando a multidão. Era um cortejo espontâneo, de proporções inéditas pra gente: enlutadas estavam pessoas de todas as idades; gente tirando selfies e fotos ao lado de imagens do rei; alguns abatidos, outros nem tanto; grupos conversavam, outros seguiam em silêncio. Aquilo jamais poderia ter sido organizado por TV, facebook ou qualquer outra coisa. Aquilo ali era um movimento popular de verdade.

Um dos vários registros de fotos ao lado de imagens do rei.

Um dos vários registros de fotos ao lado de imagens do rei.

Aquela cara de "satisfação constrangida" por ter vindo com a roupa certa, mas pra festa errada.

Aquela cara de “satisfação constrangida” por ter vindo com a roupa certa, mas pra festa errada.

Então, é hora de fazer um adendo:

Antes que você, amiguinho recém-politizado e chato de doer, venha comentar que “se fosse aqui no Brasil blablablá…”, eu vou me adiantar e te dizer uma coisa que você vai me prometer não mais esquecer toda vez que eu citar essa viagem: Oriente e Ocidente são coisas totalmente diferentes. E não, não quero dizer que esse é melhor ou pior que aquele, mas sim que culturalmente é colocar lado a lado um pinguim e um camelo. Partindo-se dessa afirmação tão conhecida (e tão verdadeira), já deixo aqui registrado que toda comparação dentro desse prisma é – pra dizer o mínimo e sendo muito educado – burra.

Estamos entendidos? Então vou continuar daqui.

Seguimos em direção ao hotel, agora com todo o caminho já enlutado e repleto de gente. Dos dias que se seguiram, tive a atenção chamada por um tailandês após sair de um dos trocentos templos budistas da cidade justamente por estar com uma camiseta verde (e não preta). E de nada adiantou minha cara de bosta por não querer vestir preto num calor de mais ou menos 35 graus – a questão não era calor ou frio, mas respeito. Pode parecer abusivo, mas reafirmo: em poucos dias dessa viagem, ficou muito claro pra mim que ocidentais nunca vão entender o Oriente, por mais esforço que se faça. E aceitar essa diferença deixa tudo muito mais fácil.

Pra não deixar uma impressão ruim sobre esse primeiro momento, conseguimos nos aproximar do Grand Palace no dia seguinte. Perto dali já haviam montado tendas de apoio aos visitantes e locais, com água, comida e atendimento médico a quem quisesse e/ou precisasse. Detalhe: NADA era cobrado. E mesmo que você tivesse acabado de chegar, não estivesse de preto e notoriamente não fosse tailandês o tratamento era igualmente cordial e atencioso. Uma coisa comovente de verdade.

A aglomeração no Monumento à Democracia, já no final da tarde...

A aglomeração no Monumento à Democracia, já no final da tarde…

...e uma das diversas tendas de apoio no dia seguinte.

…e uma das diversas tendas de apoio no dia seguinte.

A morte do rei comprometeu nossos planos para Bangkok, isso é inegável. Mas trouxemos outros exemplos, lições e momentos muito difíceis de serem explicados. Assim como é difícil recomeçar a escrever aqui no Faniquito.

Mas a gente se adapta, e a viagem segue em frente. O luto duraria um mês (nossa viagem também), e traria novas histórias mais pra frente.


*Durante nossos afazeres matinais, fizemos uma pausa pra comprar um sorvete numa biboca de uma senhora que não falava inglês, mas que se fazia entender na base da calculadora. Após pagarmos o sorvete, essa mesma senhora fez uma reverência à Dé, tocando na blusa dela (que não entendeu imediatamente o que havia acontecido). Poucos segundos depois, ficou claro: a Dé estava de preto, e a senhora agradeceu pelo luto. Foi bonito.

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