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Europa

Gastronomia

Quem resiste ao kebab?

31 de março de 2016

Na maioria dos países da Europa, o kebab é uma excelente opção para enfrentar a fome – aquela companhia constante (e chata) em qualquer viagem bem aproveitada. Prato quase onipresente, é encontrado em restaurantes, vendinhas, em quiosques nas ruas e até mesmo em algumas galerias. Os responsáveis por tal difusão são os turcos, cuja culinária permeia e influencia diretamente os hábitos alimentares do continente.

É comum confundí-lo com o churrasco grego brasileiro, e os que “temem” tal coincidência (que se justifica em alguns aspectos ruins, e em outros muito bons) podem se privar de uma experiência gastronômica espetacular. A semelhança está justamente na forma como está disposta a carne do lanche: um espeto giratório. E termina aí, se você escolher um lugar minimamente preparado para sua refeição – porque sim, podrão tem em tudo quanto é canto no mundo.

O kebab em seu formato "tradicional", que é aquele enroladinho. Mas...

O kebab em seu formato “tradicional”, que é aquele enroladinho. Mas…

...ele também pode chegar num pão gigante maravilhoso!

…ele também pode chegar num pão gigante maravilhoso!

De cordeiro, carne ou frango (e às vezes, com essas carnes misturadas), o kebab costuma transbordar recheios: molhos, tomate, alface, repolho, cebola, pimenta, e até mesmo batata frita podem acompanhar os sabores do espeto. Conta também o fato de não ter um “formato muito definido”, podendo ser servido num taco, num pão, num prato ou numa caixinha, dependendo do gosto e da fome do freguês. A Dé experimentou pedir um kebab sem todos os ingredientes e levou uma aloprada do vendedor, então esteja preparado pra ouvir umas piadinhas em caso de maiores requintes.

De todos os atrativos, o maior talvez seja o preço. Equivalente à nossa comida de rua e mais barato do que os famigerados food trucks, o kebab pode causar certa desconfiança por ser um prato tão acessível. Uma tremenda besteira e um certo preconceito – a gente também costuma torcer o nariz pras Kombis espalhadas por aí, até experimentar um X-Tudo num dia de fome. Observe o ambiente, a frequência e os lanches nas mesas ou mãos vizinhas. Sentindo confiança, arrisque.

Apesar da semelhança com o churrasco grego, a higiene é outro papo.

Apesar da semelhança com o churrasco grego, a higiene é outro papo.

E o resultado, também!

E o resultado, também!

Valorizar aquela graninha guardada pra viagem consiste também em partir pros quitutes locais vez ou outra. Com tamanha presença em tantos lugares, fugir de algo tão saboroso e barato não faz sentido. O kebab é daquelas coisas que a gente voltou sentindo falta, e funciona como impulso pra voltar e matar saudade. Prepare a fome e divirta-se!

Hungria

Uma história de liberdade

16 de fevereiro de 2016

Ir a Budapeste e não conhecer seu Parlamento é quase impossível. A região onde está localizada a Praça da Liberdade (Szabadság tér) é rota inevitável tanto para turistas como para moradores da cidade – mais ou menos como ir ao Rio e não ver o Cristo ou vir a São Paulo sem passear pela Paulista. Suas alamedas amplas e os belos edifícios que a circundam compõem um cenário que pede uma paradinha pra contemplação. Os walking tours passam por lá, e qualquer pessoa que queira conhecer o histórico prédio às margens do rio Danúbio acaba visitando a praça de tabela, dado que ambos estão separados por apenas um quarteirão de distância.

Porém, nada de Parlamento ou detalhes maiores sobre a Szabadság tér hoje. Vamos falar especificamente de um detalhe – ou melhor, uma instalação que faz parte da praça. Algo tão divertido quanto surreal, dado seu simbolismo. Estamos falando de uma prisão.

Sim, prisão. De água.

"Lembra daquela vez, em que a gente foi preso em Budapeste?"

“Lembra daquela vez, em que a gente foi preso em Budapeste?”

A sensação de Liberdade é sempre a melhor e mais divertida.

A sensação de Liberdade é sempre a melhor e mais divertida.

Durante o século XIX, a mesma área dava espaço a uma prisão, utilizada durante a Revolução Húngara de 1848. O território húngaro é repleto de lembranças dessa natureza: de memórias de guerra a locais onde ocorreram massacres populares, tudo é lembrado e eternizado de alguma maneira. A prisão em questão, há 150 anos, era a maior do continente europeu até então. Destruída em 1897, deu lugar à praça onde estão localizados alguns dos memoriais mais importantes do país, e prédios de embaixadas internacionais – entre elas, a americana. Entre esses memoriais, está uma das instalações mais curiosas e chamativas dali. Nada de estátua, pórtico ou pedra fundamental, mas sim uma fonte d’água, em forma de quadrilátero. Seus jatos, quando ativos, formam uma imagem semelhante às barras de uma hipotética prisão. Impossível não se aproximar pra saber do que se trata.

Porém, o mais interessante é a possibilidade de “entrar” nessa prisão. Nas partes internas e externas desses jatos d’água, pequenas plataformas que funcionam como pedais. Basta pisar para que elas desativem segmentos da fonte por alguns segundos – o tempo necessário para entrar ou sair da instalação. Mais legal do que a própria instalação é a forma como a gente acaba aprendendo um capítulo tão importante da história do país. Interagir com a fonte faz com que tal experiência se torne inesquecível.

Com isso, uma memória terrível que já data de quase dois séculos é transformada em algo totalmente diferente. Dor vira alegria, cicatriz vira diversão. Um país que já foi tão castigado em alguns dos mais sangrentos e cruéis capítulos da História não teme escancarar seu passado das mais diversas maneiras. Porém, nem todas precisam fazer menção direta a determinados episódios. Transformações são permitidas: uma história de repressão ganha significado oposto, com a “prisão por opção em uma cadeia d’água”.

A opção? É sempre pela liberdade – a mesma que dá nome à praça, e significado à vida dessas pessoas. A mesma liberdade que a gente sente quando conhece uma história dessas de perto.

Gastronomia, Romênia

Caru’ Cu Bere, e o eisbein gigante

19 de janeiro de 2016

Hoje a gente vai falar de gordice. O Caru’ Cu Bere* não é para amadores.

Depois de uma primeira incursão não tão feliz na culinária romena, resolvemos buscar indicações com procedência para nossa segunda refeição. Como chegamos em Bucareste à tarde, havíamos jantado num lugar esquisitinho – uma quase tradição em nossas viagens, nunca acertamos logo de cara um lugar bacana (apesar da cerveja ter funcionado como um belíssimo cartão de visitas). Nossa aposta estava no almoço seguinte, e nossas fichas foram pro Caru’ Cu Bere.

Antes de explicar as razões para essa escolha, um pouquinho de história:

O Caru’ cu bere é um restaurante cuja história começa em 1879, e está localizado no centro histórico de Bucareste. Os tapumes na fachada entregavam um delicado e cuidadoso projeto de restauração. Originariamente da família de Nicolae Mircea, o restaurante passou para o domínio da Companhia Comercial de Bucareste em 1948, durante o período pós-guerra, tendo suas paredes internas e pinturas cobertas por uma inexplicável e bizarra camada de gesso. O processo de restauração de seu interior começou na metade dos anos 80, sendo o prédio retomado definitivamente pelos descendentes de Mircea somente em 1999. Desde então, a restauração de sua arquitetura tem sido executada com os devidos cuidados.

E como é bonito, o danado...

E como é bonito, o danado…

Muito bem. Lá estávamos, e ao nosso lado um enorme grupo de turistas. Considerado o restaurante número um de Bucareste, é de se esperar que sua frequência seja alta. Uma moça nos atende em inglês fluente, e nos leva ao subterrâneo – um dos três pisos, além da área de calçada onde localizam-se trocentas mesas. Mais do que aparentar, o Caru’ Cu Bere dá a impressão de abrigar toda a população da Romênia. Recebemos o cardápio, e a paixão me arrebata logo de cara – definitivamente, nossas fichas estavam mesmo no lugar certo.

Quando você vê uma foto e reconhece o amor.

Quando você vê uma foto e reconhece o amor.

Estreando na Europa, a Dé pede um schnitzel – coisa que eu também estava com vontade de fazer, mas como resistir a um joelho de porco com uma faca enfiada? E não amigos, não estamos falando do Valdívia no Departamento Médico do Palmeiras! Mesmo com o aviso “for two persons” no rodapé da foto, ignorei completamente os bons modos e ativei o ogro que mora no meu coração. Enquanto esperávamos os pratos (e sim, o atendimento é lento – o que prova que paulista é realmente neurótico e mal-acostumado), abracei a cerveja da casa como se fosse uma velha amiga. A pequena fez o mesmo, em uma das poucas vezes em que ela se arriscou na viagem.

Dé, num raro momento "viking meigo com calor"

Dé, num raro momento “viking meigo com calor”

Algum tempo depois, estávamos famintos. Havíamos passeado durante toda a manhã e comecinho da tarde. O salão inferior era bastante barulhento, com os garçons passando a todo momento, pessoas falando alto (e bebendo como se devem afinal aquilo era também uma cervejaria). Quando estávamos quase desfalecendo de fome, abriram-se as portas da esperança.

Derramando lágrimas de saudade.

Derramando lágrimas de saudade.

O desafio estava lançado: o joelho de porco (com uma casquinha possivelmente inspirada nas sacanagens mais sujas dessa vida), pickles, polenta, raiz-forte, repolho e pimentas. Foram poucas vezes na vida em que um sorriso de satisfação foi tão espontâneo e sincero.

Isso, meus amigos, chama-se FELICIDADE.

Isso, meus amigos, chama-se FELICIDADE.

Mesmo mais modesta, a Dé também recebeu amor em forma de comida.

Mesmo mais modesta, a Dé também recebeu amor em forma de comida.

Almoçamos lindamente, e obviamente eu demorei muito mais que a Dé pra terminar o eisbein (contei inclusive com a ajuda dela em alguns momentos, pois dividir comida é amor). Foi a primeira de muitas visitas que fizemos ao restaurante, contrariando nossos hábitos de desbravar a maior quantidade possível de lugares diferentes numa viagem. Mesmo não sendo o lugar mais barato do mundo, cabia no bolso, o cardápio era gigante, e um almoço com tamanha qualidade e gostosura pedia novos desafios. Testamos coisas diferentes, que foram igualmente satisfatórias, mas ficou ali um gostinho de “precisamos fazer isso de novo, a quatro mãos”.

Não deixamos de dar aquele alô pra costelinha...

Não deixamos de dar aquele alô pra costelinha…

...e pra linguicinha...

…e pra linguicinha…

...recheada <3

…recheada <3

Decidimos: seria um outro eisbein nosso prato de despedida da Romênia (e da Europa) ao final da viagem. Quase um mês depois, voltamos. E numa noite chuvosa, após um dia corrido e cansativo, estávamos famintos e exaustos. Parecia o fechamento perfeito.

E foi. COMO FOI, MEUS AMIGOS. E assim que chegou aquele tarugo de porco cheiroso, resolvemos gravar um videozinho em homenagem ao outro viking que conhecemos, e que deveria domar tal iguaria com prática mais que natural: meu sogro 🙂

Se abriu seu apetite, não foi em vão. Amiguinhos: a Romênia é demais, e o Caru’ Cu Bere um dos lugares obrigatórios pra você visitar na vida. Um restaurante aberto há tanto tempo, que serve uma cerveja linda, trocentos pratos gostosos e UM PORCO DESSE TAMANHO está contribuindo para o avanço da humanidade, e precisa ser prestigiado por gerações e gerações. Vá com fome!

Para quem quiser saber mais: www.carucubere.ro


*Nossos textos não são patrocinados. A gente indica aquilo que a gente gosta/aprova, porque isso também ajuda na viagem alheia. Simples assim.

Polônia

Arbeit macht frei (2/2)

23 de novembro de 2015

Ao contrário da ida para Auschwitz I, o caminho para Auschwitz II-Birkenau serviu pra gente descansar um pouco a cabeça e as pernas. Mesmo sendo uma distância curta, um pequeno intervalo era mais que necessário. Alguns minutos depois, estávamos no portão de entrada.

É bem difícil descrever esse novo impacto, uma vez que o tamanho do campo é totalmente discrepante de qualquer percepção que a gente possa ter por filmagens ou fotos. Em frente à entrada, olhando para ambos os lados, é impossível definir onde termina a área de Auschwitz II-Birkenau. Aguardamos nossa guia, e pouco depois estávamos entrando.

Em frente ao portão de entrada (e também a entrada dos trens, no período).

Em frente ao portão de entrada (e também a entrada dos trens, no período).

À esquerda, uma enormidade.

À esquerda, uma enormidade.

À direita, não enxerga-se onde termina.

À direita, não enxerga-se onde termina.

Uma tentativa fracassada de mostrar o todo.

Uma tentativa fracassada de mostrar o todo.

A vastidão era ainda maior. Andávamos em ritmo acelerado em meio aos trilhos, que naquela época traziam os trens então repletos de prisioneiros. Vários grupos de visitantes se espalhavam no local, e os olhos procuravam as referências tão conhecidas daquele verdadeiro matadouro. O cenário novamente era de um verde vivo e melancólico, com horizontes planos a perder de vista. A tarde era nublada, com uma leve chuva que ia e vinha. Novamente, parecia que o tempo acompanhava nossas emoções.

O espaço gigantesco dispersa a impressão de multidão, mas ela existia.

O espaço gigantesco dispersa a impressão de multidão, mas ela existia.

Pouco depois de entrar, era essa a visão de quem olhava pra trás...

Pouco depois de entrar, era essa a visão de quem olhava pra trás…

...e olhava novamente para a frente.

…e olhava novamente para a frente.

Paramos adiante próximos a um dos vagões, mantido no local. Dali em diante seguiram-se as explicações de como era feita a chegada dos prisioneiros, e sua ordem de execução: crianças, idosos e outras pessoas com capacidade física prejudicada eram os primeiros a serem enviados para a câmara de gás. A “solução final para o problema judeu” parecia ainda mais cruel quando imaginada em tais dimensões. Auschwitz II-Birkenau foi pensada para aliviar a capacidade do campo anterior, então excedente. Desmonte essa frase e pense no que exatamente ela quer dizer, e me diga se é possível ficar indiferente a tamanha atrocidade.

Um dos vagões, que traziam os prisioneiros...

Um dos vagões, que traziam os prisioneiros…

...e um pequeno memorial em seu degrau.

…e um pequeno memorial em seu degrau.

Seguimos adiante até chegar na área oposta à entrada do campo de concentração. Um memorial com placas em homenagem aos refugiados que estiveram em Auschwitz II-Birkenau – em seus respectivos idiomas, além de uma em inglês para a compreensão da mensagem por todos os visitantes.

“Para eternizar neste lugar um grito de desespero e uma advertência para a humanidade, onde os nazistas assassinaram cerca de um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, judeus principalmente vindos de vários países da Europa.
Auschwitz-Birkenau 1940 – 1945”

As placas, em diversos idiomas.

As placas, em diversos idiomas.

Olhando novamente em direção à entrada, uma ideia da distância percorrida.

Olhando novamente em direção à entrada, uma ideia da distância percorrida.

Uma perspectiva real das distâncias da entrada (1), do vagão (2) e do memorial com as placas (3).

Uma perspectiva real das distâncias da entrada (1), do vagão (2) e do memorial com as placas (3).

Ali mesmo, fomos todos para o lado esquerdo. As ruínas que estavam logo abaixo eram aquilo que restou de uma das câmaras de gás, destruídas pelos próprios nazistas, que tentaram apagar as evidências da barbárie pouco antes da chegada do exército soviético – como se isso fosse possível. A proximidade de um local desses, mesmo tão descaracterizado, era tão perturbadora quanto a impressão que tivemos ao visitar a câmara de Auschwitz I.

Os escombros das câmaras de gás, totalmente...

Os escombros das câmaras de gás, totalmente…

...ou parcialmente descaracterizadas.

…ou parcialmente descaracterizadas.

Pouco adiante, entramos em um dos galpões de tijolos, cujo visual quebra a imensidão verde dos campos. Eram dois os tipos de galpão existentes em Auschwitz II-Birkenau: os de tijolos abrigavam às mulheres, enquanto os de madeira aos homens. E abrigar é uma forma muito educada de descrever o que de fato acontecia no interior desses galpões. O chão era de terra e lama, com higiene inexistente. Acumulava-se ali todo tipo de dejeto, enquanto os prisioneiros se amontoavam em verdadeiros cubículos. Um lugar onde caberiam no máximo 4 pessoas abrigava de 20 a 30. A impressão nas fotos não é distorcida: é inconcebível a possibilidade desse número absurdo conseguir sobreviver nessas condições – e era exatamente esse o desejo nazista.

De 20 a 30 mulheres eram amontoadas em cada uma dessas células.

De 20 a 30 mulheres eram amontoadas em cada uma dessas células.

Parece impossível, como toda e qualquer informação que tivemos nesse dia.

Parece impossível, como toda e qualquer informação que tivemos nesse dia.

No caso dos barracões onde eram alojados os homens, somente a base resistiu à queima de arquivo nazista. Sendo de madeira, foram incendiados antes da chegada dos soviéticos, restando a fundação como memória dos espaços. Estávamos quase no final do tour, enquanto caminhávamos entre os outros galpões.

Enquanto os barracões femininos permanecem preservados...

Enquanto os barracões femininos permanecem preservados…

...pouco restou dos masculinos.

…pouco restou dos masculinos.

Já próximos ao portão de entrada novamente, nossa guia agradeceu a todos pela presença, contou sobre sua própria preparação para aquele trabalho, e que se esforçava ao máximo para relatar os acontecimentos de forma mais precisa, detalhada e respeitosa a todos, de forma que as lições daquele dia nunca mais se perdessem.

Nossa conclusão sobre a experiência em Auschwitz é aquela que tínhamos como expectativa antes de pensar o destino de nossa viagem: algo transformador, em muitos aspectos. Doloroso, complexo, absurdo de tão distante da nossa realidade. Mas nesses tempos em que a intolerância brota inadvertidamente dos lugares mais inesperados, o aviso expresso na placa em homenagem aos que lá estiveram nos parece cada vez mais necessário. Sentir na pele um lugar tão importante na História da humanidade nos devastou, a ponto de voltarmos para Cracóvia em silênco e mentalmente exaustos. Dali em diante, vivemos e revivemos aqueles momentos a cada informação já conhecida ou ainda não sobre os horrores da Segunda Guerra – e todas as outras, relativas ou diretamente ligadas a atitudes absurdas promovidas pelo ser humano. Recomendamos sim a visita aos campos. Aprender sobre nossa essência, e sobre o que somos capazes de fazer quando nossa vida é movida pelo ódio e pelo preconceito é uma lição da qual jamais esqueceremos.

Polônia

Arbeit macht frei (1/2)

19 de novembro de 2015

Visitar Auschwitz foi possivelmente a experiência mais marcante da minha vida.

Em um texto anterior, expliquei minha fascinação por assuntos de guerra, seus memoriais e como isso me emociona. Há algum tempo estou ensaiando pra escrever esse texto, uma vez que – imagino – nenhum tipo de explicação seja capaz de quantificar o impacto que estar num campo de concentração, num presídio ou ruína causa na gente. Então cheguei à conclusão de que, ao invés de descrever como foi o dia de visita, melhor contar desordenadamente como um único dia foi capaz de mudar minha cabeça pra sempre. Não será a última vez que falaremos de Auschwitz por aqui (futuramente a Dé contará a história dela, da forma que quiser), e explico isso por fazer questão que esse relato seja algo totalmente meu, mesmo.

Ao adquirir o tour para Auschwitz, você visita dois locais: Auschwitz I durante a manhã (os famosos prédios de tijolos, construídos para servirem de alojamento à artilharia nazista, e que posteriormente foram transformados em campos de concentração), e Auschwitz II-Birkenau à tarde (o campo de extermínio, onde os trens desembarcavam os judeus para execução). Auschwitz não é Auschwitz, mas sim a pequena cidade de Oświęcim, rebatizada durante o domínio alemão com o famoso nome. Nosso tour saía da Cracóvia, e a distância de aproximadamente 70 km serviu para preparar o grupo para o que viria a seguir. Na própria van, o documentário Die Befreiung von Auschwitz (A Libertação de Auschwitz) foi assistido em silêncio sepucral durante uma hora. Devo ter chorado umas 3 ou 4 vezes, e não fui o único. Trata-se do registro cinematográfico oficial feito pelos soviéticos quando da libertação dos campos, e as imagens são EXTREMAMENTE fortes. O vídeo completo (com narração em inglês, assim como assistimos) está disponível logo abaixo. As cenas são fortíssimas, e não recomendadas a estômagos mais sensíveis.

A chegada ao campo já traz esse desconforto, e dali em diante uma guia e sua acompanhante – funcionária designada pelo próprio Museu de Auschwitz, com a função de evitar qualquer distorção aos fatos reais – acompanham o grupo. As explicações são feitas por meio de rádio, e são distribuídos fones e decodificadores aos visitantes. Com isso, mesmo com a verdadeira multidão presente (e distribuída em diversos e esparsos grupos), o silêncio impera quando se passar pelo portão principal. Passar pelo letreiro Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”) tem o impacto de ser pisoteado por um gigante. As costas pesam. Mesmo sendo um lugar tão conhecido, é impossível ficar indiferente e não imaginar o que de fato aconteceu com as pessoas que pisaram naquele mesmo chão um dia. As imagens em preto e branco dão espaço a uma realidade de cores terrosas e muito bonitas – pode parecer absurdo dizer isso, mas sim: Auschwitz I é um lugar belíssimo (não esquecendo que antes de se tornar o que se tornou, seus prédios eram um alojamento). Todo o cuidado e estrutura de hoje obviamente contrastam com o estado das instalações no período em que foram utilizadas.

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

Os passos são lentos entre as alamedas, agora livres dos cercados da época (porém, alguns corredores permanecem intactos, cercados por arame farpado e totalmente claustrofóbicos). Grande parte dos edifícios é aberta à visitação, abrigando o museu que dá nome ao complexo: fotos dos prisioneiros, mapas estatísticos, uniformes, objetos pessoais, manchetes de jornal, infográficos, maquetes e estátuas ocupam seus interiores. Numa determinada área, uma simulação de fluxo de prisioneiros até a morte nas câmaras de gás, e uma lata de Zyklon-B (pesticida à base de cianureto, “a grande descoberta dos nazistas para extermínio de massa a baixo custo, uma vez que os fuzilamentos eram demorados e caros, dada a quantidade de balas gasta pelo exército nazista“).

Os corredores cercados.

Os corredores cercados.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

Uma das áreas mais impressionantes era sem dúvida a adaptação do espaço interno em um prédio, onde acumulavam-se os pertences pessoais dos prisioneiros. Com a promessa de trabalho no local, os judeus chegavam carregando em mãos aquilo que podiam. Após sua chegada, tudo lhes era tirado (ou melhor, roubado) pelo exército nazista, separado e guardado. Malas, sapatos, próteses, pincéis de barba, aparelhos de barbear, xícaras e até mesmo urinóis estão expostos em vitrines enormes.

Mas nada é mais chocante do que uma das vitrines, onde está acumulado todo o cabelo raspado das mulheres mortas nas câmaras de gás. Os nazistas utilizavam esse cabelo para a fabricação de sacos. Confesso que nesse momento me sinto nauseado tentando descrever essa cena, da qual não temos registro fotográfico (por proibição explícita na sala). Mas faz-se necessário o registro, e ele existe – na internet, efetuado por pessoas que desrespeitaram esse aviso. Não destacaríamos esse tipo de desrespeito aos regimentos internos de qualquer lugar, mas provar sua existência é necessário – pois é racionalmente inconcebível acreditar que um dia isso aconteceu.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

Dentro dos prédios, fotos são proibidas na maioria das áreas – possivelmente para facilitar a fluidez no fluxo dos diversos grupos de visitantes. Quando permitidas, somente sem flash. O tempo para as mesmas é bastante reduzido – porém, é possível fazê-las sem correria e com qualidade. A maioria dos ítens de época são preservados em cabines de vidro, enquanto diversos painéis detalham todo tipo de informação pertinente. A comunicação interna é feita de forma sóbria, direta e extremamente didática, não deixando margem para interpretações erradas sobre o que está relatado.

Em algumas áreas, salas inteiras permanecem preservadas e/ou restauradas. Alojamentos dos prisioneiros, algumas salas onde operava o comando do exército nazista, e no subsolo que pudemos visitar, celas tão minúsculas que os prisioneiros encarcerados tinham sua musculatura forçada ao extremo quando “encaixados” naqueles cubículos, com morte certa em um curto período de tempo. Mesmo com as explicações cuidadosas da guia, o cenário era desolador e cada vez mais inacreditável.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Sobre as explicações dadas durante o tour, vale um adendo: o cuidado e a delicadeza em tratar o assunto sem ofender este ou aquele povo é notável. Em nenhum momento mistura-se o povo alemão à mentalidade presente no comando nazista, e seu maior expoente – cuja nacionalidade, não esqueçamos, é austríaca. Parece pouco, mas separar muito bem as coisas é um dever histórico dos mais importantes.

Viajar no tempo é um exercício constante durante o tour, e se colocar no lugar daquelas pessoas é inevitável. Não há um minuto em que sua cabeça não esteja funcionando sob um prisma de um prisioneiro – ou de um nazista. Sim, é hipocrisia dizer que a gente só se coloca no papel do massacrado, quando o maior desafio é tentar entender a cabeça de quem massacra. Por isso mesmo, você acaba por diversas vezes tentando entender o personagem, mesmo sem querer. Absurdo dizer isso? Desumano? Não amigos… eu garanto: o desgaste mental ao final do dia tem muito a ver com esse exercício involuntário, de tentar compreender o incompreensível.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível...

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível…

...bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

…bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

Dos momentos mais pesados que tivemos lá dentro, destaco três:

– Uma área entre dois prédios, onde encontra-se o muro de fuzilamento. O espaço tornou-se um pequeno memorial, que estava cercado de flores. No alto, atrás da parede de tijolos que une os blocos 10 e 11, uma bandeira que faz alusão aos uniformes dos prisioneiros – com listras azuis e um triângulo vermelho invertido.

A lembrança dos prisioneiros.

A lembrança dos prisioneiros.

E sua terrível sentença final.

E sua terrível sentença final.

– A forca onde Rudolf Höss – comandante do campo de concentração – foi executado. Quase no fim do tour da manhã, poderia ser um fechamento “positivo” para tanta desgraça relatada durante a manhã (na minha cabeça e pelos meus valores, não existe nazista que mereça perdão – e eu posso dizer isso de consciência muito tranquila).

O último ato de Rudolf Höss.

O último ato de Rudolf Höss.

– Visitamos uma câmara de gás, por dentro. Entrar naquele pequeno galpão foi uma das sensações mais sufocantes e dolorosas de todo o dia (e posso dizer, da minha vida). São poucos segundos de escuridão, interrompida por lâmpadas amareladas e pequenos feixes de luz vindos dos buracos do teto, onde era despejado o Zyklon-B. Marcas na parede, silêncio, até sua respiração parece ecoar enquanto você absorve uma das maiores crueldades pensadas pelo ser humano. Sair de lá, olhar pra trás e imaginar o que aquele lugar – hoje inofensivo – já foi um dia é tão, mas tão pesado e terrível, que é impossível não sair rasgado de dentro pra fora.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror... é impossível definir o que se sente ali dentro.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror… é impossível definir o que se sente por ali.

Obviamente foi o último ponto antes do período do “descanso” entre os dois tours, pois não há emocional que resista. Todo mundo precisa dessa pausa, para voltar à própria realidade, almoçar/lanchar e se recuperar um pouco para a segunda parte do dia. Comemos alguma coisa, voltamos para a van e esperamos o grupo se reunir. O dia estava cinzento, com ameaça de chuva leve. Eu acredito que até mesmo o clima reforçava as sensações daquela visita.

Contarei sobre Auschwitz II-Birkenau no próximo texto.

Portugal

Castelo de Almourol, um tesouro bem escondido no interior de Portugal

5 de novembro de 2015

Por Melissa Lüdeman


“Todo momento é o melhor. Isso é iluminação.” – Eckhart Tolle

Há um tempo tenho tentado praticar uma filosofia de vida que muito tem me beneficiado “viver o momento presente”. Em minha última viagem de férias me descontectei o máximo possível das redes sociais, principalmente do facebook, postando só algumas imagens de lugares bonitos e curiosidades no instagram.

Meu namorado, pelo contrário fez uma espécie de diário fotográfico de viagem, postando no facebook um apanhado de fotos os lugares que havíamos passado. Foi numa destas publicações, que um amigo dele resolveu nos dar uma dica de viagem pra gente:

“Não deixem de visitar o Castelo de Almourol”.

Como estava bem no caminho do nosso roteiro, e havíamos alugado um carro para fazer o trajeto entre as cidades, não pensamos duas vezes e resolvemos encaixar o local no nosso planejamento do dia seguinte.

Chegamos na Vila Nova da Barquinha no fim da tarde depois de uma odisseia homérica na Serra da Estrela, e nos deparamos com um cenário maravilhoso, daqueles que marcam na alma da gente: brisa agradável, ambiente silencioso que nos elevava a um status de serenidade profunda.

Banhado pelo rio Tejo, o Castelo de Almourol teve um papel muito importante na história de Portugal: foi abrigo de da Ordem dos Templários durante a Idade Média, estes encarregados de povoar e conquistar e defender o território próximos a região. A construção jaz numa ilha, e o acesso ao Castelo hoje é proibido, fato que não prejudica em nada a experiência.

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O local é de fato, um presente. Lá pude descansar de um dia exaustivo, apreciar a beleza de um local abençoado pela natureza e viver uma experiência que não estava acostumada há tempos: pela primeira vez não pensei em nada, não desejei estar em outro lugar; estava com minha mente completamente vazia, apreciando o momento no qual estava inserida.

Hoje, ao resgatar esta lembrança, só consigo me lembrar de um trecho do livro “O Poder do Agora”, do querido Eckhart Tolle:

“Onde quer que você esteja, esteja lá por inteiro. Se você acha insuportável o seu
aqui e agora e isso lhe faz infeliz, há três opções: abandone a situação, mude-a ou aceite-a totalmente. Se você deseja ter responsabilidade sobre a sua vida, deve escolher uma dessas opções e deve fazê-lo agora. Depois, arque com as conseqüências. Sem desculpas. Sem negatividade.”

A beleza do local pode ser comprovada nas fotos abaixo.

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Aprendi uma coisa muito valiosa com o Castelo de Almourol: quando viajamos precisamos estar totalmente entregues ao momento presente, isto quer dizer, aproveitarmos cada segundo e estarmos dispostos a viver experiências fora do roteiro.

O planejamento é uma ferramenta muito importante para garantir que sua viagem seja bem sucedida, mas dar espaço para o novo é essencial para que cada momento seja único.

Muitas pessoas se preocupam tanto em seguir cronogramas e regras pré-definidas, que perdem oportunidades valiosas de viver experiências que não cabem numa tabela de excel. Imagina tivéssemos ignorado a dica do amigo, seguindo apenas o planejado? A resposta é muito simples: não teríamos conhecido um dos lugares mais bonitos que já visitamos em toda a nossa vida.

Permita-se você também. Sempre!


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