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Perú

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Até os ossos

19 de abril de 2016

Nosso vôo saiu do Brasil ainda de madrugada, e chegamos logo cedo a Lima. Os guias responsáveis por nossa recepção avisaram que nosso primeiro passeio na capital peruana seria uma visita à Iglesia de San Francisco. Estávamos MORRENDO DE SONO e nossos ossos ainda doíam quando a van chegou até o hotel, e o trânsito caótico em direção ao centro histórico da cidade deixava nossa missão ainda mais difícil.

Começando pelo fato de que não somos lá muito religiosos, nenhum dos dois, e portanto visitar igrejas, capelas e catedrais nem sempre faz parte dos nossos planos. Mas essa viagem era diferente, e o planejamento não era nosso, portanto seguiríamos aquilo que nos havia sido planejado (de graça, sempre é bom reforçar isso numa viagem que você ganha num concurso cultural). Além disso, havia a figura do guia – algo até então novo pra nós. Muito simpático e tagarela, o rapaz não calava a boca. Entrar no ritmo dele depois de uma noite de sono tão curta não estava sendo fácil. Eis que enfim o motorista parou o carro, e poucos metros depois estávamos em frente à catedral.

Não é todo dia que tem alguém pra tirar foto da gente viajando :)

Não é todo dia que tem alguém pra tirar foto da gente viajando 🙂

Obviamente o guia nos explicou cada detalhe, tanto do exterior como do interior. E lógico que a gente se lembra de muito pouco ou quase nada. Porém, nos impressionou o trabalho em madeira do coro da igreja, e a área que funcionava como prisão, além da beleza interna da catedral como um todo.

O tagarela e uma explicação da qual não lembro de absolutamente nada...

O tagarela e uma explicação da qual não lembro de absolutamente nada…

...e o trabalho em madeira do coro - esse sim eu lembro bem, porque é bonito pra burro.

…e o trabalho em madeira do coro – esse sim eu lembro bem, porque é bonito pra burro.

Com a Dé de dentro da prisão, uma foto bem legal!

Com a Dé de dentro da prisão, uma foto bem legal!

É de fato um prédio muito bonito. Até aquele momento o passeio era ok – nada de muito novo ou muito impressionante. Mas eis que fomos surpreendidos novamente:

– Agora vamos conhecer o ossário?

Ora, um ossário é sempre um negócio bacana…! Afinal de contas, quem não curte uma caveirinha original? Pois muito bem… descemos até uma área subterrânea da igreja. Soubemos ali que a catedral possuía diversas catacumbas e passagens secretas, e a cada informação nova dessa natureza a curiosidade só aumentava. Quando preparávamos nossas câmeras, o aviso chegou: não eram permitidas fotos nas catacumbas.

Cacete. Mas pra isso existe a internet 🙂

Afinal, naqueles corredores jazem os restos mortais de aproximadamente 25 MIL PESSOAS. Em caixotes ou agrupados em arranjos geométricos, os crânios, fêmures, tíbias e outros ossinhos estéticos adornam as galerias da igreja. É uma das maiores coleções dessa natureza em todo o mundo, e o resultado estético é, no mínimo, impressionante.

Um dos vários corredores que ligam as galerias (e ainda não se sabe se existem outros, e a quais prédios ligam).

Um dos vários corredores que ligam as galerias (e ainda não se sabe se existem outros, e a quais prédios ligam).

Uma das "exposições" de ossos. Na foto anterior, eles estão em caixas e valas pelo caminho.

Uma das “exposições” de ossos. Na foto anterior, eles estão em caixas e valas pelo caminho.

Desde o começo do século XIX, o local servia de cemitério para moradores da região, uma vez que ainda não havia um cemitério “oficial” pelas redondezas. Mesmo após sua inauguração em 1808, a igreja continuou recebendo cadáveres até 1821, quando sua utilização foi definitivamente proibida por Don José de San Martín, com o intuito de evitar a proliferação de doenças e epidemias. Obviamente todos os ossos estão fossilizados, e não há nenhum tipo de odor desagradável no local.

Passear em meio a tantas testemunhas é daquelas experiências que você não esquece nunca mais. E nos serviu como cartão de visitas da capital peruana. Um cartão pouco ortodoxo, é verdade… mas suficientemente marcante para, por breves instantes, mandar nosso sono pro espaço, e trocar o bocejo pela alegria que só uma viagem é capaz de trazer.

Bolívia, Perú

Wiphala e as cores do arco-íris

29 de junho de 2015

Aproveitando a deixa de sexta-feira, onde num momento histórico os Estados Unidos aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o país, e dessa decisão uma verdadeira avalanche de arco-íris tomou conta das redes sociais (avalanche essa da qual o Faniquito também participou, óbvia e orgulhosamente), o texto de hoje trata de uma outra bandeira, muito semelhante em sua forma e cores, mas pouco conhecida em território nacional: a Wiphala.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Na Praça das Armas de Cusco, as principais bandeiras do país.

Tivemos nosso primeiro contato com ela durante nossa viagem para o Perú e Bolívia – que juntamente com o Equador, possuem no povo andino a raíz de sua civilização. A cultura andina é exaltada por esses povos, das maneiras mais diversas. Em nossa passagem pelos principais sítios arqueológicos peruanos, nossos guias contavam com orgulho como o povo andino conseguiu camuflar seus ideais e credos em obras europeias, imagens trazidas de fora, e uma série de outros artifícios durante a colonização espanhola. Dessa forma, os andinos conseguiram manter a história de seus antepassados, trazendo adiante uma herança que nós, brasileiros, perdemos com a colonização portuguesa: nossa população nativa foi dizimada, e não sabemos absolutamente nada sobre nossa verdadeira história.

Tendo em vista nossa evolução econômica e o tamanho de nosso território, pode parecer besteira para alguns o resgate desses valores. Mas fato é que o povo andino possui um sentimento nacionalista muito mais forte do que qualquer patriotismo oportunista que costumamos cultivar (principalmente em anos de Copa do Mundo), e um mínimo contato com essa cultura engrandece nossa percepção da riqueza que a história latino-americana possui. E quanto a ela pertencemos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A bandeira faz parte de todos os eventos pátrios peruanos.

A Wiphala está presente em praticamente todo o território desses três países, comumente ladeando a bandeira nacional – nem sempre em seu formato mais conhecido, quadrado e quadriculado, e sim em faixas representando as cores do arco-íris. Algumas partes do território argentino, chileno e colombiano também possuem população andina, o que populariza ainda mais o símbolo na maioria dos países sul-americanos. Em 2007, a nova constituição boliviana incluiu a Wiphala oficialmente como símbolo pátrio.

Confesso que me senti meio alienado quando vi a Wiphala pela primeira vez, e minha reação óbvia foi “que raio de bandeira é essa?”. Pela quantidade (e disposição) de suas cores, ela é facilmente confundível com a bandeira gay, e isso foi o que mais me chamou a atenção naquele momento. E aquilo me incomodou – não a coincidência, mas sim o fato de eu, sul-americano que sou, nunca ter ouvido falar dela.

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

A Wiphala em sua versão tradicional (quadriculada), que ilustra o início do nosso texto de hoje, e possui algumas versões diferentes, dependendo da região andina representada. Nessa foto, aparece por duas vezes (abaixo da bandeira boliviana, e acima da bandeira britânica).

Acho que a ignorância incomoda naturalmente. Se não o faz, deveria. Desconhecer algo que não faz parte do nosso dia-a-dia deveria despertar a curiosidade. Imergir um pouco na cultura andina (e fizemos isso por algumas vezes, tanto no Perú como na Bolívia) nos trouxe um respeito muito grande por esses povos, sua luta, e um esclarecimento lamentável pela forma como foram massacrados. Às vezes a gente bate naquilo que não conhece, e desmerece quem por algum motivo escolhe caminhos que não os nossos. Foi assim com os andinos. É assim com quem luta todo dia contra o preconceito. Que essas cores, que tanto alegram a gente em dias de chuva e sol, esclareçam de uma vez o quanto o mundo pode ser melhor quando a gente aprende a respeitar – e não massacrar – a bandeira alheia.

Gastronomia, Perú

Uma tarde no museu

22 de janeiro de 2015

Confesso que não sou o cara que viaja pra conhecer museus (exceto alguns muito específicos – famosos ou não – cujos temas ou abordagens são quase obrigatórios). Porém, em Lima tivemos a oportunidade de conhecer um lugar que agrada tanto aos aficcionados quanto a pessoas como eu, que só querem um passeio interessante – seja ele onde for.

O Museo Larco é um museu particular, cuja coleção compreende peças importantes da história do Perú datadas de até 4000 anos atrás. Obviamente, para quem é natural de um país com pouco mais de 500 anos de história pós-colonização, é um tsunami de informações sobre o que de fato acontecia com nosso continente. Dá até uma invejinha tanto conhecimento sobre as raízes de um povo – coisa que a gente infelizmente nem arranha.

O museu é bem ajeitadinho e não deve nada pros grandes e clássicos...

O museu é bem ajeitadinho e não deve nada pros grandes e clássicos…

...fora que o Perú é especialista em surpreender seus visitantes.

…fora que o Perú é um país especialista em surpreender seus visitantes.

Fizemos o passeio acompanhados de um guia (coisa que a gente também nunca havia feito até então, e que recomendamos a quem se interessar). Apesar de perder em privacidade e autonomia, você ganha demais em contexto – parece uma coisa óbvia, mas pra gente não era, e por isso a explicação. A coleção de cerâmicas, máscaras e artefatos encontrados durante escavações em diversas cidades do Perú são de cair o queixo. E o museu é extremamente bem montado (iluminação, áreas e fluxo), o que torna o passeio ainda mais bacana. Das informações que recebemos, uma vertente que vale ressaltar é um outro lado da visão sobre os incas – algo bem diferente do que se conta/diz em Cusco, por exemplo. E isso é o máximo, pra explodir a cabeça mesmo, e fazer a gente ficar sedento pra conhecer que raio de continente é esse em que a gente vive – principalmente essa parte de baixo.

Uma imagem da exposição em detalhes.

Uma imagem da exposição em detalhes.

Porém, ainda não citei os diferenciais, e eles existem. Três deles, pra ser mais específico:

O primeiro é o acervo que não está exposto do museu propriamente dito, mas sim num depósito anexo. Uma vez que a ideia do museu nasceu de uma coleção herdada (por Rafael Larco Hoyle, filho de Rafael Larco Herrera – o colecionador original – sendo que Larco Hoyle foi aconselhado por seu tio – Victor Larco Herrera, que fundou o primeiro museu de Lima – a construir um museu para abrigá-la), a cada nova leva de artefatos descobertos durante escavações posteriores, era necessário também um novo espaço para guardar tanta coisa. São diversos corredores, com dezenas de peças tão ou mais bonitas do que as expostas na área principal: vasos, máscaras, utensílios, cabaças, potinhos e potões sensacionais. Beira ao inacreditável a quantidade e a beleza de tudo.

A parte "não-exposta" é simplesmente absurda.

A parte “não-exposta” é simplesmente absurda.

Não são poucas as peças, as prateleiras e os corredores.

Não são poucas as peças, as prateleiras e os corredores.

Pois é... a gente fica com cara de pateta.

Pois é… a gente fica com cara de pateta.

O segundo é a coleção erótica (nada mais justo, uma vez que estamos no Perú, e piadas sempre cabem). Simpaticamente é a hora em que nosso guia apresentou o espaço, fez alguma piadinha marota e disse que nos esperaria na saída dali. O que se seguiu foi uma ode à criatividade dos nativos peruanos – porque o bicho pega nas imagens nada inocentes que compõem a coleção.

Se você achava que eram os orientais os  mais simpáticos à sacanagem...

Se você achava que eram os orientais os mais simpáticos à sacanagem…

...acredito que sua opinião mude a partir de agora.

…acredito que sua opinião mude a partir de agora.

Por último, o terceiro motivo: após tanta risada com uma exposição nada convencional, estávamos com fome. E o restaurante do museu é uma parada necessária a toda e qualquer pessoa que pretenda iniciar uma incursão na culinária local – hoje, das mais bem conceituadas do mundo. Sem frescuras, mas com todo o requinte possível: que comida boa do cão. Além de tudo ser lindo e cuidadoso, o sabor é um troço que eu só sou capaz de descrever com caras e barulhos de tão delicioso. Papo de gordinho? Não. Mesmo. E esse trocinho redondo da primeira foto abaixo continua sendo a coisa mais gostosa que comi na vida.

Não dá pra explicar, meus amigos. Mas posso dizer que é tão bom quanto bonito.

Não dá pra explicar, meus amigos. Mas posso dizer que é tão bom quanto bonito.

Vale ainda ressaltar o jardim que entorna o museu – uma beleza colorida, mas que a gente acabou não dando muita importância na ocasião, por estarmos muito cansados nesse dia (hora dessas eu conto a história da viagem inteira, justificando esse fato). O complexo ainda possui várias outras atividades educacionais, recreativas… enfim, é uma casa linda, que em nada se parece com aqueles museus que davam sono nas aulas de História.

Cores e mais cores nos jardins do museu.

Cores e mais cores nos jardins do museu.

Vá, pra fugir um pouco dos passeios mais tradicionais da capital peruana. Tenha curiosidade nos olhos, alimente bem seus ouvidos, e dispa-se de pudores. Ah sim! Se puder, vá com fome 😉