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Uma saga chamada Roraima (6/6)

12 de abril de 2016

Com muita tranquilidade, acordamos para nosso último dia no Monte Roraima. Voltar a dormir na primeira base foi um misto de alívio e realização, uma vez que havíamos sim vencido o gigante, e toda dor dali em diante faria parte do preço pela aventura. Podíamos lidar com isso. Além do mais, havíamos tomado banho após longos dois dias e meio, e a sensação de ares renovados ultrapassava qualquer explicação que eu seja capaz de dar.

Pro meu azar, o café da manhã era omelete (eu não como ovo). Não lembro qual a opção que havia naquele momento, mas sei que havia uma, e tomamos nosso café da manhã sem pressa. Arrumamos nossas coisas, e a última coisa a ser feita foi calçar as botas pela última vez. Os pés estavam machucados demais, e seriam mais 13 quilômetros naquela condição. Mas botamos a mochilinha nas costas e seguimos.

Sem a pressão da descida, fizemos o caminho de volta sem atropelos. Com o corpo já aquecido, as dores aumentaram e o cansaço não tardou a aparecer. Mantivemos nosso ritmo (que era lento, mas constante) e seguimos adiante, com rápidas pausas pra água e algum descanso. O visual da manhã era lindo, e o tempo ainda ameno nos ajudava.

Não é todo dia que essa é sua paisagem matinal.

Não é todo dia que essa é sua paisagem matinal.

Com o calor aumentando, o restante do grupo se distanciou e novamente restamos apenas nós dois. Caminhávamos lentamente no trecho final, e já nos últimos metros, quando existiam subidas e descidas, tomamos todo o cuidado do mundo para não aumentarmos ainda mais os problemas físicos que vínhamos acumulando pelo caminho: as articulações estavam doídas, as costas pesavam e a respiração não era fácil – mas tudo isso devido à nossa total falta de preparo para a aventura. Quando avistamos a entrada do parque, fomos tomados de uma alegria tão grande que a única coisa que pensávamos naquele momento era “vamos chegar”. E chegamos.

Assim como ocorreu durante nossa chegada ao Roraima, o grupo todo nos aguardava e comemorou nossa vitória. Eu segui direto pro banheiro, onde tomei um banho na pia e fiz aquele xixi na alvenaria que há quase uma semana não fazia. Quando voltei, a Dé estava encostada, com a pressão caindo. Corri em direção ao Ricky, e ele ainda mais rapidamente foi socorrê-la. Puxou do bolso um vidrinho com extrato de cânfora e fez a pequena ressurgir numa fungada só que ela deu. Os jipes chegaram na sequência, e ele ordenou que ela fosse a primeira a entrar, e ficasse próxima dele durante nossa volta. O mesmo guia que havia me recomendado não subir, que tirou um sarro com a nossa cara na noite anterior e que salvou a pele da Dé em nossos últimos momentos por lá. Um cara legal, o Ricky.

Crentes que seríamos levados direto pro hotel em nossa volta, qual não foi nossa surpresa quando o jipe tomou o sentido contrário na rodovia principal e seguiu adiante. Pouco depois, o dito parou num restaurante de beira de estrada. Nosso fechamento seria UM ALMOÇO. COM CERVEJA GELADA. E COCA-COLA GELADA.

Sério povo, vocês não imaginam o que é aproveitar um momento.

Apesar de ter mais gente na foto do que no nosso grupo, é essa nossa segunda e última foto conjunta na até o momento maior aventura das nossas vidas.

Apesar de ter mais gente na foto do que no nosso grupo, é essa nossa segunda e última foto conjunta na até o momento maior aventura das nossas vidas.

Enfim, relaxamos. Devidamente comidos, agora sim seríamos deixados no albergue do Backpackers (que era vizinho ao nosso, ou seja, fomos deixados na porta do nosso destino). Mochilinhas e mochilões desembarcados, a primeira providência foi um banho de chuveiro. E que coisa linda é essa coisa de chuveiro, não? Ventilador no teto. Uma cama macia. Um teto sobre a cabeça. A gente valoriza tudo depois de não ter nada, e que diferença é nossa cabeça apenas uma semana depois. Do grupo, alguns amigos permanecem em contato com a gente até hoje, e de tanta dificuldade carregamos as melhores lembranças – principalmente, porque as dores passam. No corpo, na vida… só fica o que é bom.

E é por isso que a gente viaja.

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Uma saga chamada Roraima (5/6)

22 de março de 2016

Acordamos cedo, de verdade. Não sei que horas eram, mas ao abrir a barraca não existia Monte Roraima. Tudo era névoa, e a sensação é que estávamos (e devíamos estar mesmo) no meio de uma nuvem espessa. Não era um bom sinal, pois a descida era perigosa mesmo em condições climáticas ideais. Aquele clima multiplicava o perigo. Fechamos a tela e começamos a nos trocar. Dez minutos depois, abrimos novamente e… nem sinal de névoa. Mesmo escuro, o céu estava aberto. Não há meteorologista que consiga decifrar o que acontece lá em cima…

O café da manhã consistia num mingau HOR-RO-RO-SO, e uma maçã. Nosso guia disse que era o desjejum ideal, e por isso encaramos até onde nosso estômago aguentou. Passamos para a maçã em seguida (pra tirar aquele gosto de papa da boca), e de barriga cheia arrumamos nossas coisas. Antes da descida, o Ricky reúne o grupo e pede para que todos oremos por um retorno em segurança. Definitivamente o papo sobre os perigos daquela manhã era bem sério. Seguimos.

O caminho era exatamente o mesmo de dois dias antes, no sentido inverso, com o agravante de somar a quilometragem do segundo dia, para que chegássemos à primeira base – aquele em que dormimos no primeiro dia. No total, eram 17 quilômetros pelo caminho, sendo 4 pra baixo e 13 pra frente. Pra animar, um visual inspirador antes da descida.

Era só descer. Simples, não?

Era só descer. Simples, não?

O primeiro trecho era justamente o Paso De Las Lágrimas, agora pra baixo. Pedras molhadas, um cuidado desgraçado, por muitas vezes encaixamos o corpo e fomos descendo quase de bunda. O grupo vinha unido, e com ordens expressas de não parar para fotografias naquele local sob hipótese alguma (o que explica um pouco a falta de imagens desse texto). No meio da descida, o celular da Dé dispara um alarme que ela esqueceu de desligar. Sem poder parar, seguimos com o alarme tocando por uns 20 minutos até a primeira parada. Uma cena que de tão ridícula foi engraçada demais.

Vencida essa etapa, agora “era só descer”. Parece fácil falando assim, mas não demorou para entendermos o porquê daquele dia ser justamente o mais difícil. Os obstáculos não eram tão grandes logo de cara, mas eram constantes. Já era nosso quinto dia, e não tardou para os músculos das pernas começarem a cansar. Descíamos lentamente (o grupo novamente desgarrou), e aos poucos os joelhos foram ficando bambos. Um pouco depois e já tínhamos que usar os braços para apoiar o corpo. A descida ficava mais íngreme, pois havíamos ultrapassado o paredão e entrávamos no trecho que levava até o segundo acampamento, e a trilha ficava definitivamente vertical. Os braços cansaram, e passamos a descer de bunda, literalmente. Nosso ritmo era cada vez mais lento, e a manhã ganhava ares dramáticos, quando finalmente chegamos.

A primeira parte tinha ficado pra trás. Ou pra cima.

A primeira parte tinha ficado pra trás. Ou pra cima.

Ao lado, a cachoeira do Kukenán lá longe.

Ao lado, a cachoeira do Kukenán lá longe.

Nisso todo o grupo já estava descansando e pronto para almoçar. Não tínhamos ideia de que horas eram. Ainda estávamos sem banho (naquele momento já eram dois dias desse martírio). Jogamos as mochilas no chão, pegamos um prato e comemos o que conseguimos, pouco antes de desabar no chão. Não se passaram dez minutos até ouvirmos o chamado do guia: “Vamos embora?”

Pegamos as mochilas e saímos antes de todo mundo, já sabendo que seríamos ultrapassados nos minutos seguintes – o que obviamente aconteceu. Com o passar do tempo, nos vimos (quase) isolados novamente (pois tínhamos a companhia do Christoph, um dos dois alemães do grupo, e que estava tão cansado quanto a gente), seguindo uma trilha que parecia ser a correta. Esse “parecer” começou a nos preocupar quando passamos a ter uma visão mais ampla do horizonte, confirmando que de fato não havia ninguém por perto. Acho que estávamos cansados demais para entrar em pânico, e seguimos adiante, confiando que chegaríamos ao nosso destino. O tempo se arrastava, e a impressão era de estarmos caminhando há horas. Meu maior medo era que chegássemos sem luz natural ao primeiro acampamento, e não pudéssemos tomar banho por mais um dia – coisa que já não dava mais pra tolerar.

Treze quilômetros de uma trilha não tão confiável (mais pra frente).

Treze quilômetros de uma trilha não tão confiável (mais pra frente).

Quando tudo parecia desgraçado, vimos alguém mais à frente. O coração acelerou. Era um dos guias, nos esperando para atravessar o primeiro dos dois rios que precisávamos cruzar. Não estávamos longe! Mas as pernas estavam esgotadas, e nosso medo de cair era gigante. Com todo o cuidado do mundo e com muta ajuda dele, atravessamos um a um até a outra margem. O Christoph resolveu ficar por ali mais um pouco para descansar, enquanto eu e a Dé seguimos desesperadamente para o primeiro rio. Queríamos chegar. Queríamos tomar banho. O ânimo ganhou sobrevida, e mesmo em frangalhos nos apressamos. O Ricky nos esperava no primeiro rio, e da boca dele veio nosso maior presente:

– Ricky! Que horas são?!?!?
– São 13h40.

SIM, ERA COMEÇO DA TARDE – AINDA!

A impressão era de fim de tarde, tal o nosso cansaço. Com a ajuda dele, atravessamos trôpegos e seguimos de meias encharcadas até o acampamento, que ficava pouco acima. Com exceção do Christoph e do canadense – que faziam parte do grupo, éramos novamente os últimos. Porém dessa vez, nada de mau humor. O grupo nos recebeu com uma alegria absurda, e a tarde era ensolarada e linda! Foi emocionante demais chegar ali, seguir até nossa barraca, arrancar a roupa e correr em direção ao rio!

Tomamos um banho que levou umas duas ou três horas, eu não sei precisar. Foi sem a menor sombra de dúvida – e debaixo de um sol delicioso – o melhor banho das nossas vidas.

Cheirosos, dignos e LIMPOS, voltamos ao acampamento. A Dé foi tirar um cochilo, eu fiquei com o grupo. Passamos a tarde conversando, ganhamos um queijinho (!) dos guias enquanto eles preparavam o jantar. O clima era leve, e não havia ser humano triste naquele lugar. Outros grupos estavam por ali – todos em seu primeiro dia de expedição. Alguns viajantes vieram pedir dicas e impressões da gente. A Dé apareceu, e agora estávamos todos do nosso grupo numa única mesa. Veio a comida (que era novamente macarrão – a gente não aguentava mais macarrão!), e pela última vez jantamos todos juntos. Assim que terminamos, o Ricky tomou a frente e preparou um agradecimento coletivo. Ressaltou o esforço de cada um, e novamente fomos… os últimos:

“Vocês dois… eu confesso que me enganei a respeito de vocês. Achei que os gordinhos (!) não iam conseguir, mas vocês estão aqui, e merecem os parabéns de todos nós!”

Meio fiodaputa, mas a gente aceitou o elogio.

Ainda mais porque em seguida os caras trouxeram duas garrafas de vinho (! de novo) pra todo mundo brindar o final daquele dia glorioso. O vinho era tão bom quanto o macarrão, mas e daí? Urubu na guerra é frango, meus amigos, e não ficou gota na garrafa. A ordem pro dia seguinte era que acordássemos mais ou menos cedo, tomássemos o café da manhã sem pressa e de lá seguíssemos calmamente até a base. Estava quase acabando, e fomos dormir com sentimento de missão cumprida…

…mas duvidando que nossos corpos (e pés) funcionariam na manhã seguinte.

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Uma saga chamada Roraima (4/6)

18 de fevereiro de 2016

É nosso centésimo texto! Uma alegria do tamanho do Roraima 🙂

E é também a quarta parte do nosso relato sobre o Monte Roraima. Não por acaso, o dia em que pudemos conhecê-lo lá de cima, e que além da experiência em si, significou muito mais do que isso na nossa vida. Então, sem mais delongas, à história:

Acordamos na esperança de alguma melhora em nossa situação, mas assim que abrimos a barraca o tempo úmido entregava que pouco ou quase nada havia mudado: as calças continuavam molhadas, assim como nossas botas. E com botas molhadas, como conseguir passear pelo Roraima? O terreno é totalmente irregular, composto de pedras que em certos lugares podem sim machucar seu pé. Havaianas eram impensáveis (e proibidas pelo nosso guia). Tomamos nosso café da manhã com um sentimento de derrota que poucas vezes experimentamos na vida. Nossa viagem parecia ter terminado antes da melhor parte.

Foi aí, sabe-se lá como, que veio uma ideia.

Nosso almoço do dia anterior foi um lanchinho mequetrefe, entregue pela equipe do guia NUM SAQUINHO PLÁSTICO. Bem, tínhamos meias secas. As calças eram de tecido leve, e secariam rapidamente no corpo. Se calçássemos as botas com esse saquinho nos pés, e com a meia sequinha, tínhamos uma chance de sobrevida lá em cima. Rapidamente o pessoal do grupo (que compadecia completamente do nosso desânimo) ssiu caçando os saquinhos do dia anterior. Nos trocamos, testamos, e tivemos nosso primeiro momento de alegria e esperança no topo do Roraima. Situação até então impensável, um milagre aconteceu – e voltamos ao jogo 🙂

De volta ao jogo, tínhamos um longo caminho.

De volta ao jogo, tínhamos um longo caminho.

O que se seguiu dali em diante foi um longo e tranquilo passeio durante toda a manhã. Começamos fazendo o caminho inverso ao que havíamos desesperadamente feito no final da tarde anterior, quando o temporal nos pegou e fez o que fez. Em fila, seguíamos o guia entre as depressões e desníveis das pedras no caminho. De fato, diferenciar poças d’água e rocha era uma tarefa difícil até durante o dia, pois as rochas são quase pretas, enquanto as pequenas piscinas mantém aspecto semelhante, e enfiar o pé na lama é questão de sorte (ou azar, como foi o nosso caso). Pelo caminho destacava-se também toda uma flora totalmente desconhecida, com plantas coloridas cuja principal característica era a capacidade absurda de absorção de água – dado o ecossistema único do tepui.

Um verdadeiro vale de ikebanas.

Um verdadeiro vale de ikebanas.

Mais adiante, uma área um pouco mais aberta reservava um verdadeiro tapete branco, contrastando com a rocha negra da superfície. O Vale dos Cristais é de fato tão bonito quando o nome sugere, e era necessário um cuidado especial para não prejudicar as estruturas do local. O sol dava as caras pela primeira vez.

De todos os tamanhos, os cristais que dão nome ao vale...

De todos os tamanhos, os cristais que dão nome ao vale…

...servem como um inacreditável tapete branco.

…servem como um inacreditável tapete branco.

O dia começava bem, e nossa esperança havia voltado :)

O dia começava bem, e nossa esperança havia voltado 🙂

Entre subidas e descidas, fomos conhecendo alguns vales, lagoas, depressões e formações rochosas que nos deixavam de boca aberta. Os cenários que o Roraima proporciona não são comparáveis a nada que conhecíamos até então. Foram várias as situações em que nos sentíamos pisando na Lua, sem nenhum exagero. Alguns locais levavam nomes engraçados, pelas silhuetas formadas: um sombrero, o rosto do Fidel, e outras coisas cujas imagens falam por si…

O sombrero, que veio parar na minha cabeça...

O sombrero, que veio parar na minha cabeça…

...o rosto do Fidel...

…o rosto do Fidel…

...e bem... o Ricky quis provar alguma coisa pra gente.

…e bem… o Ricky quis provar alguma coisa pra gente.

Com algumas paradinhas estratégicas, nossas roupas já estavam secas. A solução para os pés tinha funcionado, apesar de um certo calor que sentíamos por causa do saquinho entre as meias e as botas – mas dada a situação geral, estávamos num lucro monumental. O tempo havia aberto, e o frio da manhã dava lugar ao sol e um céu azul. Lembrando que estávamos sem banho já há um dia e meio, compensávamos nosso cheiro com a alegria da sobrevida no tepui – e pra falar bem a verdade, não éramos os únicos a estar naquele tipo de situação: essa higiene à qual estamos tão acostumados aqui na civilização dá lugar a um certo instinto de sobrevivência em acampamentos desse tipo. Queríamos um banho, mas queríamos ainda mais era vencer o Roraima.

As formações eram - pra dizer o mínimo - inacreditáveis.

As formações eram – pra dizer o mínimo – inacreditáveis.

Uma pausa pra descanso ao lado de uma das lagoas.

Uma pausa pra descanso ao lado de uma das lagoas.

E entre subidas e descidas, seguíamos adiante.

E entre subidas e descidas, seguíamos adiante.

Seguimos vale adentro, descendo algumas encostas e caminhando entre as depressões. As dores no meu joelho haviam aumentado, mas como eu disse, tínhamos objetivos maiores e claros nesse dia. Eis que chegamos enfim à área de borda do tepui. Um tempo maior de contemplação era necessário. Estávamos caminhando acima das nuvens, num território maravilhoso, e com uma vista privilegiada do nosso vizinho, o Kukenán. Hora da ficha cair e comemorar: havíamos enfim conquistado o Roraima, e Carl Fredricksen não estava mais sozinho.

Chegamos!

Chegamos!

E sim, é tudo de verdade.

E sim, é tudo de verdade.

A primeira imagem, só com as nuvens...

A primeira imagem, só com as nuvens…

...e a segunda, com a gente entre elas :)

…e a segunda, com a gente entre elas 🙂

Perto dali, um conjunto de pedras chamado carinhosamente de “La Ventana” desafiava os mais corajosos a uma olhada pelo vão central daquela estrutura: uma janela para baixo, com rajadas de vento absurdas e violentas. Para se aproximar, por questão de segurança só estando agachado ou deitado. Nenhum dos dois se arriscou… em compensação, a Dé insistiu em olhar pra baixo, e resolveu fazer isso do jeito dela.

La Ventana, meus amigos. Um vão para o nada, basicamente. Não encaramos.

La Ventana, meus amigos. Um vão para o nada, basicamente. Não encaramos.

Mas como eu casei com uma pateta, ganhei esse momento de presente...

Mas como eu casei com uma pateta, ganhei esse momento de presente…

...momento esse que a Mercedes deixou ainda mais evidente.

…momento esse que a Mercedes deixou ainda mais evidente.

O tempo variava rapidamente. Chuva e sol revezavam, enquanto seguíamos para a última parte do passeio da manhã (já era começo de tarde), que consistia em visitar as piscinas naturais que se formavam entre as rochas. Piscinas? Banho, certo? Errado… pois nós (e outros oito do grupo) esquecemos toalhas e sabão de côco nas barracas. Quem não esqueceu foi o grupo de neozelandezes, que se divertiu enquanto a gente se lamentava pela falta de ideia – e por nosso cheirinho nada agradável. Os caras definitivamente sabiam o que estavam fazendo.

As belíssimas e convidativas piscinas naturais...

As belíssimas e convidativas piscinas naturais…

...que só os neozelandeses usaram :(

…que só os neozelandeses usaram 🙁

Depois do banho deles, voltamos ao “hotel”. Almoçamos por lá com calma e tranquilidade. O Ricky – nosso guia – alertou que um dos carregadores acompanharia quem quisesse em um passeio durante a tarde na rocha que ficava logo em frente ao hotel, enquanto ele ficaria descansando. Resolvi fazer o mesmo – pelo bem do meu joelho, e por saber que o dia seguinte seria o mais difícil dessa nossa epopeia. Eu precisava me recuperar um pouco, ou o quinto dia seria ainda mais dramático. A Dé seguiu com o grupo para a pedra, enquanto eu fiquei conversando com o Ricky e com o canadense, que também ficou por lá. Foi algo divertido e bem inesperado: tive que desdobrar meu inglês macarrônico na conversa com ambos, e aos poucos fui me sentindo mais à vontade com essa nova necessidade. Tomamos um chá – estava esfriando bastante – e assim que o grupo voltou, jantamos enquanto a luz natural ia embora.

Nosso hotel, visto da pedra que ficava logo em frente.

Nosso hotel, visto da pedra que ficava logo em frente.

A Dé também saiu na foto, numa outra versão, enquanto eu estava me recuperando lá embaixo :)

A Dé também saiu na foto, numa outra versão, enquanto eu estava me recuperando lá embaixo 🙂

Um dia que começou com ares de tragédia terminou assim...

Um dia que começou com ares de tragédia terminou assim…

...e nós, logicamente, agradecemos aos céus por isso :)

…e nós, logicamente, agradecemos aos céus por isso 🙂

Nossos pés sobreviveram. O plano deu certo, e o calor dos pés acabou secando internamente as botas. Claro que a pele dos pés sofreu com isso, e nós que já estávamos razoavelmente machucados ganhamos novas feridas. A Dé sofria com bolhas e mais bolhas, enquanto minha preocupação maior ainda era o raio do joelho, que havia sido forçado o dia todo entre subidas e descidas. Mas a sensação de vitória superava tudo isso. Havíamos caminhado, conhecido e vivido o Roraima lá de cima, e sem dúvida era o melhor dos quatro dias até então.

Fomos dormir mais do que satisfeitos, e rezando para que o dia seguinte fosse bom. Mas nada havia nos preparado para o que estava por vir.

Gastronomia

Quem tem boca…

20 de outubro de 2015

O princípio fundamental de qualquer viagem é experimentar. É fato: estando fora de casa, queremos fazer, experimentar ou viver algo diferente. Mesmo as viagens mais cômodas e sossegadas pedem por esse ar de “coisa nova”, seja ela uma bebida, um prato, um banheiro, uma cama, ou mesmo um horário diferente do que nos acostumamos a acordar todos os dias. Pra fazer o de sempre, melhor ficar em casa… certo?

Eu e a Dé nunca cozinhamos nos albergues em que nos hospedamos. Nada pessoal, muito menos preconceito, mas das nossas necessidades (de casal, e mesmo pessoais) experimentar a comida local é tão importante quanto conhecer um novo lugar – e disso a gente não abre mão. Respeitamos e admiramos aquela galera que passa toda uma viagem na base do pão Pullmann e miojo, mas nas contas que fazemos antes de viajar, poder comer sem se preocupar é uma de nossas diversões. E pra que possamos fazer isso da forma mais bacana, preferimos experimentar o que estiver na frente. Nem sempre a gente se deu bem fazendo isso, mas temos boas histórias pra contar:

Ovos romenos

Estávamos no Caru’ cu bere – um dos restaurantes mais antigos e tradicionais de Bucareste (e que será tema de texto mais pra frente). Chegamos cedo, querendo tomar um café da manhã antes de sair pra conhecer a cidade. Sendo um verdadeiro ponto turístico, todos os funcionários falam inglês. Pedimos o cardápio, e ele veio – todo bilíngue, exceto nos pratos do café da manhã. Podíamos perguntar para a garçonete, mas preferimos valer o risco e pedir pela beleza estética das palavras em romeno. A Dé ganhou dois ovos. Eu, um omelete com chá. Eu não como ovo, então a Dé acabou comendo omelete com ovos, e eu fiquei só no chá (minha hora do almoço foi, por consequência, selvagem).

Ovolândia, e o melhor chá da vida.

Ovolândia, e o melhor chá da vida.

Poderia ter sido uma baita decepção, mas a pequena gostou do prato duplo dela, e eu tomei o melhor chá da minha vida – sem hipocrisia, tava tão bom que eu tive que procurar sabor semelhante no Brasil (e o que mais se aproximou foi o vermelhinho da Twinings).

Sim: um chá britânico com gostinho de Romênia :)

Sim: um chá britânico com gostinho de Romênia 🙂

Trocando em miúdos

Em nossa primeira viagem à Argentina, abrimos mão de experimentar a parrillada por pura falta de dinheiro/estômago. E se você não sabe o que é parrillada, a gente explica:

“A parrillada permite provar diferentes partes da vaca. Esta refeição geralmente começa com uma salsicha e chouriço, antes da chegada da carne principal. Ela também pode ser acompanhada de rins, pâncreas, fígado e tripas de gado. Frango e porco esporadicamente também estão inclusos.”

Quando voltamos pra lá, virou dívida pessoal. Acabamos nos metendo numa Parrilla (um restaurante especializado em parrillada) na cidade de Ushuaia. Um baita frio, uma baita fome, respiramos fundo e pedimos a criança. O restaurante estava lotado, e havíamos tido uma breve aula sobre o que viria naquele prato com meu sogro.

Nada te prepara pra uma intimidade tão grande com a vaca.

Nada te prepara pra uma intimidade tão grande com a vaca.

Com a parrillada na mesa, o caminho era sem volta: experimentamos um a um aqueles cortes bizarros de carne, com consistências e cores estranhas. Não dá pra dizer que detestamos, muito menos que amamos – apenas riscamos uma pendência da nossa lista pessoal, e sobrevivemos sem grandes dores àquele jantar esquisito.

Aaaaaaah…alpaca!

Havíamos terminado nosso primeiro dia de passeio em Machu Picchu. Descemos até a cidade, e entramos no primeiro restaurante que vimos na frente (e que nos pareceu entrável – não dá pra deixar o estômago falar na frente do cérebro sob hipótese alguma). Das opções do cardápio, nos chamou a atenção a carne de alpaca – e acabamos pedindo os quatro pratos iguais. Um prato que chegou lindo como esse da foto, e gostoso de um jeito muito difícil de se imaginar. Fomos embora de bucho cheio, e morrendo de saudade dessa carninha. Quando eu e a Dé voltamos pro Perú – em Lima – pedimos alpaca novamente, e ficamos sabendo que só servem a coitada em Cusco e arredores. Ou seja, foi realmente um prato típico e muito difícil de se encontrar em outro lugar. Ah… você não sabe o que é alpaca?

Alpaca: sua gostosa.

Alpaca: sua gostosa.

É esse bichinho simpático da foto lá do topo, que abre nosso texto de hoje. Pois é: por mais fofo que seja, na hora da fome a gente quer mesmo é dentar uma coisa suculenta. Dessa coisinha bonitinha comemos esse medalhão, espetinho e até pizza. Alpaca: experimente.

O desafio da arepa

O café da manhã na Venezuela era um verdadeiro desafio: Santa Elena de Uairén sofria com o desabastecimento (assim como ocorre com todo o país), e queríamos porque queríamos experimentar a tal arepa, que é um prato bem comum e típico do país. Fomos a um restaurante chamado La Arepera, crentes que conseguiríamos degustar o tal quitute. Porém, o garçom era mais atrapalhado que qualquer outra coisa, e depois de pedirmos duas arepas e dois sucos de laranja, recebemos dois tostex e duas Coca-Colas. Essa foi a reação da Dé ao ocorrido:

Arepa e suco? Não... tostex e Coca-Cola.

Arepa e suco? Não… tostex e Coca-Cola.

La Embajada: quem vê cara...

La Embajada: quem vê cara…

...não vê coração. Nem arepa :)

…não vê coração. Nem arepa 🙂

Foi num cantinho chamado La Embajada que encontramos nossa arepa… e que troço bom a tal massinha de polenta frita com recheios variados (no caso, nem tão variados, mas muito gostosos). Nossos cafés da manhã na cidade consistiam de arepas e sucos enquanto estivessem disponíveis (e mesmo comendo como se fosse um almoço, o valor nunca ultrapassava dez Reais PARA AMBOS). Ganhou um lugar especial no nosso coração.

Traumas ou delícias: tudo vira história. Então deixe seu medo em casa, e vá experimentar os sabores do mundo sem medo 🙂

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (3/6)

5 de outubro de 2015

Seria uma manhã difícil. Possivelmente, a mais esperada até então, uma vez que subiríamos o Roraima – e isso já era motivo mais que suficiente para que acordássemos dispostos, mesmo com as dores que já nos incomodavam – a mim principalmente, pois o joelho de fato não estava nada bem. Imaginando o que viria pela frente, era hora de respirar fundo.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Tomamos nosso café, pegamos nosso almoço (um sanduichinho de presunto e queijo embrulhado num saquinho plástico – guardem essa informação), aprontamos as coisas e saímos na frente de todo mundo (pois já estávamos cientes que seríamos os últimos a chegar no dia seguinte – então por que não começar na frente pra diminuir esse gap?). Descemos uma pequena trilha, cruzamos aquela cachoeirinha onde deveríamos ter tomado banho no dia anterior, e seguimos até o começo da subida.

É um trecho bastante acidentado, com obstáculos semelhantes a degraus – mas “não tão dóceis”, pois os pés encaixavam durante cada pequena subida, e a mudança entre os níveis não era tão suave. A trilha é evidente, mas longe de ser aquela coisa Começamos bem, mas não demorou para que o corpo começasse a dar sinais de cansaço. Durante essa primeira parte da subida, algumas pessoas e pequenos grupos desciam pela mesma trilha. Praticamente todos com quem cruzamos ofereciam palavras de incentivo, já sabendo o tamanho do desafio com que estávamos lidando. Algumas pausas para água – que encontrávamos com certa frequência pelo caminho, e isso facilitava um pouco as coisas. Nisso, o grupo todo havia passado pela gente – inclusive o guia, que esperava a passagem de todos em determinados lugares durante a subida.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

Água: um carinho na alma.

Água: um carinho na alma.

É difícil precisar o tempo de subida, mas enfim chegamos ao paredão do Monte Roraima. E foi uma alegria absurda, acreditem.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Dali em diante, o caminho consistia numa trilha de subidas, descidas e alguns trechos retos mais longos, o que serviu pra gente descansar um pouco as pernas e viver um pouco mais a coisa. A impressão que se tem andando por ali é de estar num terreno de mata fechada, pois do lado oposto ao paredão existe uma vegetação fechada que impede a visão do penhasco. Porém, em alguns trechos essa mesma vegetação abre, e pessoas até então com medo de altura (como eu) têm duas opções: perder o medo ou voltar. Eu optei pela primeira, e posso dizer que nesse dia perdi meu medo definitivamente.

À direita, pedra. À esquerda, nada...

À direita, pedra. À esquerda, nada…

...além de uma vista espetacular.

…além de uma vista espetacular.

Nosso ritmo continuava mais lento que o dos demais, e em nosso último encontro com o guia ele já nos esperava há algum tempo, com cara de poucos amigos. Após dar a volta numa enorme pedra (e me livrar dos últimos resquícios de medo que ainda insistiam em me atormentar), começamos o trecho final da subida – o chamado “Paso De Las Lágrimas“, batizado assim por dois motivos: fica debaixo de um lugar que, durante as chuvas, vira uma pequena queda d’água (a 700 metros do chão, é bom relembrar); e por motivos óbvios – você já chega lá em cima querendo chorar, tamanha a dificuldade de todo o caminho, composto basicamente de enormes pedras amontoadas.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra frente, lágrimas.

Olhando pra frente, lágrimas.

Minhas dores eram indisfarçáveis, e o guia notou que o desafio – que já era grande pros seres humanos normais – pra mim parecia ainda maior. Ele nos aguardava no início da subida, e de lá ele me deu o veredicto:

– Preciso ser sincero com você: vendo as dores que você está sentindo, e a dificuldade em subir esse trecho de hoje, eu aconselho que você volte antes. A gente sobre, você passa a noite lá em cima, e amanhã um dos carregadores volta com você pra base de hoje. O caminho lá em cima é todo de pedra, e com esse joelho assim é arriscado… fora que pra descer você vai sofrer demais. É o meu conselho, mas vocês decidem.

Ele saiu de perto. EU EMPUTECI.

Óbvio que ele estava certo, e com toda a razão do mundo. Mas eu não tinha penado tudo aquilo pra chegar lá em cima E DESCER ANTES. Já havia pipocado uma vez em outra viagem, e me recusei a seguir conselho de quem quer que fosse. Subi o Paso xingando o guia, a mãe do guia, a Jamaica e quem mais resolvesse se meter no meu caminho. E pouco depois, estávamos lá em cima – onde ele nos esperava, para dali em diante seguirmos até o “hotel” – nome dado ao lugar em que passaríamos as próximas duas noites. Havíamos subido o Monte Roraima, e enquanto a Dé estava feliz, eu soltava fumaça.

Foi então que… aconteceu.

O guia começou a caminhar em direção ao hotel, e nós o seguíamos – no começo, no mesmo ritmo, mas meu joelho latejava e eu fui ficando pra trás. A Dé, entre os dois, foi ficando comigo e se afastando do cara, que sumiu de vista. Começa a chover, e chover muito. A gente vê no horizonte o tal hotel – que é uma formação bem evidente, mas o caminho…

…é uma coisa única. A superfície do Monte Roraima não é comparável a nada que a gente conheça, e quando olhamos pra baixo não dá pra diferenciar uma área “gramada” de uma área alagada. Arriscamos atravessar, tentando chegar o quanto antes ao hotel. Já estávamos encharcados (não dava tempo de puxar jaqueta ou cobrir mochila, o tempo virou rápido demais), e num dos buracos indecifráveis a Dé literalmente AFUNDOU até a cintura de lama. Eu travei. Ela saiu, e nisso um dos carregadores chegou pra nos guiar até o hotel.

Ricky - nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Ricky – nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Nosso "hotel", ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Nosso “hotel”, ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Éramos os últimos. Chegamos sob uma salva de palmas que tinha como único objetivo nos animar, mas estávamos totalmente derrotados – talvez como nunca em nossas vidas. Aquilo era um pesadelo: botas alagadas, roupas encharcadas e cheias de lama, fazia um frio desgraçado lá em cima. Não sabíamos como nem onde trocar de roupa. Demos um jeito, e pouco depois eu saía da barraca pra buscar o jantar da Dé – mais um macarrão, e um copo grande de leite quente – porque ela tremia de frio já dentro do saco de dormir, agasalhada e tão derrotada quanto eu. Sabíamos que as botas não secariam até o dia seguinte, e não imaginávamos como seria possível passear durante um dia inteiro lá em cima sem elas. Seria o dia mais importante da viagem, e não bastando sermos os mais despreparados, éramos também os mais arrebentados e desequipados de todo o grupo. Precisávamos de um milagre para o quarto dia, e outro para os dois seguintes.

Dois milagres em três dias: não era pouco. Dormimos totalmente sem esperança.

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (2/6)

31 de agosto de 2015

Acordamos pouco antes do sol nascer. Passamos a noite no mais absoluto silêncio, ainda nos acostumando ao aperto dos sacos de dormir, mas o cansaço do primeiro dia de caminhada fez com que as dificuldades de adaptação não fossem páreo para nossa necessidade de descanso. A manhã ainda escura exibia em nosso horizonte os tepuis ainda sob névoa. Esticamos o corpo, e começamos a nos vestir para seguir caminho logo após o café da manhã.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

A equipe de guia e ajudantes era responsável por todas as refeições, além de levantar acampamento, literalmente. Todos já estavam acordados, e nosso café não tardou a ser servido. Novamente o suco colorido, leite, chá, frutas, manteiga, fritada (que eu passei adiante), e uma espécie de pãozinho frito estavam na mesa assim que o sol apareceu. Aos poucos todo mundo foi se aproximando, e a mesa que estava vazia ficou cheia. De lá mesmo, recebemos algumas instruções de como poderia ser nosso dia, e alguns cuidados que devíamos tomar pelo caminho.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

O planejamento do dia consistia em chegarmos à segunda base perto da hora do almoço, justamente para descansarmos durante um período maior antes da subida do Monte Roraima. Atravessaríamos dois rios durante a trilha, antes de um trecho mais extenso de caminhada. Bem alimentados e de mochila nas costas, começamos nosso segundo dia.

Após um breve período de caminhada, fizemos nossa primeira pausa perto de uma igrejinha no caminho, onde nosso guia contou um pouco da história da região – e da própria igrejinha. Pouco adiante, descemos um morrinho e encontramos nosso primeiro rio.

Um longo caminho pela frente...

Um longo caminho pela frente…

...e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

…e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

Pausa.


Nessa descida (uma descida besta, que se diga), meu joelho estalou. E dali em diante eu teria meu próprio drama pessoal para cuidar. Como o corpo estava quente, não senti nada naquele instante – e seriam os últimos momentos em que eu estaria “plenamente saudável” – entre aspas mesmo.

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).


Voltemos.

Chegamos ao rio. E lá recebemos algumas instruções bastante curiosas, que eu vou listar agora mesmo:

  • Para atravessar, apenas meias nos pés: sim, nada de calçados, chinelos ou mesmo pés descalços. Pisaríamos em pedras, e para isso nos foi pedido naquela reunião ainda no albergue que levássemos um par de meias para esse fim.
  • Calçados amarrados na mala ou pendurados no pescoço: nada de segurar botas ou tênis com as mãos, pois em caso de queda você não perde seus calçados (o que seria um verdadeiro suicídio para a trilha, ou quase isso) e suas mãos estão livres para apoiar seu corpo.
  • Um por vez, com calma e sem pressa: sim, nada de bancar o Indiana Jones. A ideia é todo mundo passar numa boa, e com calma. O Ricky estava no meio do rio, e nos auxiliava com a travessia.
Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Hora de seguir as instruções, se preparar...

Hora de seguir as instruções, se preparar…

...e encarar a travessia. De meias.

…e encarar a travessia. De meias.

E assim procedemos. Depois de atravessar, as meias iam pra um saquinho (de onde seriam tiradas logo mais para a segunda travessia). Secamos os pés, colocamos outro par de meias e seguimos. Mais algum tempo de caminhada, o segundo rio, e os mesmos passos. Com todos vivos e novamente calçados, era hora de vencer os quilômetros restantes.

O dia estava bonito e o sol dava as caras. Como bom sol da manhã, ele mais agrada que machuca. O caminho do dia era bem mais acidentado, com uma subida mais acentuada em alguns trechos. Com pequenas pausas para água ou uma barrinha de cereal providenciais, fomos aos poucos nos afastando do grupo, e essa seria a tônica devido ao nosso quase nenhum preparo físico para a jornada: estávamos fadados a sermos sempre os últimos a chegar a nossos destinos, e mesmo sendo os que levavam a bagagem menos volumosa, isso ficava cada vez mais claro. O esforço do dia anterior cobrava sua conta, e somava-se às subidas cada vez mais longas. Parávamos, prosseguíamos, parávamos de novo e assim por diante.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Mas as subidas eram grandes, e....

Mas as subidas eram grandes, e….

...não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

…não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

E mais treze quilômetros vencidos!

E mais treze quilômetros vencidos!

Mas as coisas fluiram, e chegamos ao final da nossa jornada – cansados, como não poderia deixar de ser, mas inteiros (com exceção do meu joelho, que ainda não doía tanto). Estávamos sedentos por um banho, pois o esforço havia sido bem maior do que o do dia anterior. Porém, o carregador que estava com nossa bagagem ainda não havia chegado, e não tínhamos com o quê nos vestir se entrássemos na pequena cachoeirinha, situada pouco abaixo da área de camping. Esperamos algum tempo e nada. O corpo esfriou e éramos os únicos a não conseguir tomar o tal banho. Eis que quase na hora do almoço, o rapaz chega – um dos carregadores havia passado mal, e os outros resolveram seguir com ele dali em diante. Com nossas roupas e toalhas em mãos, resolvemos tentar a sorte e ver “o que conseguiríamos lavar”.

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

O local da pequena cachoeira era bem escorregadio, com lama e o escambau. Ali formava-se uma pequena piscina, onde todo mundo se lavava, e podíamos encher nossas garrafas na queda d’água, que ficava escondida entre as pedras. Mas assim que colocamos os pés na piscina, ficou claro que não teríamos direito a banho: a água CONGELAVA PENSAMENTO DE TÃO GELADA. Ainda quentes, possivelmente nos arriscaríamos por puro ímpeto, mas – acreditem – não dava. Tomamos o tradicional banho de gato, e nos demos por satisfeitos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Guardem essa informação: TOMAMOS BANHO, mesmo que precariamente.

Voltamos ao acampamento. Almoçamos tranquilamente, e teríamos toda a tarde para descansar. Conversamos um pouco com o pessoal, tentamos descansar em nossa barraca (mas o canadense e o japonês cismaram de “jogar baseball” justamente onde estávamos, e permanecer na barraca tornou-se uma tarefa impossível), e no fim das contas ficamos mesmo na área das refeições – uma espécie de tenda, junto com outras pessoas de nosso grupo, e nosso guia. De lá, podíamos enxergar claramente o paredão do Roraima, que agora estava muito próximo, e ficamos tentando advinhar como subiríamos aquilo. Onde estava a trilha?

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

O Ricky nos explicou que um cara havia conseguido subir de muletas. Eu olhei de novo praquela trilha verde, que me parecia tão impossível, e fiquei na dúvida se aquele papo era realmente verdade, ou se não era conversa pra dar coragem aos que estavam temerosos. Meu joelho já havia esfriado, e doía consideravelmente. Improvisamos uma semi-imobilização, com Salompas e uma canga funcionando como faixa por dentro da calça. A esperança é que a tarde/noite de descanso me preparassem para o desafio do dia seguinte. E por melhorem que fossem as histórias de superação, ficar diante do Roraima e não se intimidar me parecia totalmente impossível.

Chegou a noite, e assim que a luz natural caiu, nos serviram uma espécie de guisado de frango – muito bom, por sinal. Tivemos a visita de uma cobra pouco antes do jantar, que mesmo pequena acabou assustando os menos destemidos. Novamente, destacaram-se as lanternas de cabeça.

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria...

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria…

...uma cobra querendo jantar...

…uma cobra querendo jantar…

...e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

…e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

Jantamos, e pouco depois nos recolhemos. Os pés da Dé doíam, e meu joelho idem. Nos cuidávamos dentro da barraca, na base da massagem e farmacinha básica. Não demoramos a dormir, pois sabíamos que no dia seguinte teríamos possivelmente o maior desafio dessa jornada.

Ao menos, era o que pensávamos.