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Hungria

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Uma história de liberdade

16 de fevereiro de 2016

Ir a Budapeste e não conhecer seu Parlamento é quase impossível. A região onde está localizada a Praça da Liberdade (Szabadság tér) é rota inevitável tanto para turistas como para moradores da cidade – mais ou menos como ir ao Rio e não ver o Cristo ou vir a São Paulo sem passear pela Paulista. Suas alamedas amplas e os belos edifícios que a circundam compõem um cenário que pede uma paradinha pra contemplação. Os walking tours passam por lá, e qualquer pessoa que queira conhecer o histórico prédio às margens do rio Danúbio acaba visitando a praça de tabela, dado que ambos estão separados por apenas um quarteirão de distância.

Porém, nada de Parlamento ou detalhes maiores sobre a Szabadság tér hoje. Vamos falar especificamente de um detalhe – ou melhor, uma instalação que faz parte da praça. Algo tão divertido quanto surreal, dado seu simbolismo. Estamos falando de uma prisão.

Sim, prisão. De água.

"Lembra daquela vez, em que a gente foi preso em Budapeste?"

“Lembra daquela vez, em que a gente foi preso em Budapeste?”

A sensação de Liberdade é sempre a melhor e mais divertida.

A sensação de Liberdade é sempre a melhor e mais divertida.

Durante o século XIX, a mesma área dava espaço a uma prisão, utilizada durante a Revolução Húngara de 1848. O território húngaro é repleto de lembranças dessa natureza: de memórias de guerra a locais onde ocorreram massacres populares, tudo é lembrado e eternizado de alguma maneira. A prisão em questão, há 150 anos, era a maior do continente europeu até então. Destruída em 1897, deu lugar à praça onde estão localizados alguns dos memoriais mais importantes do país, e prédios de embaixadas internacionais – entre elas, a americana. Entre esses memoriais, está uma das instalações mais curiosas e chamativas dali. Nada de estátua, pórtico ou pedra fundamental, mas sim uma fonte d’água, em forma de quadrilátero. Seus jatos, quando ativos, formam uma imagem semelhante às barras de uma hipotética prisão. Impossível não se aproximar pra saber do que se trata.

Porém, o mais interessante é a possibilidade de “entrar” nessa prisão. Nas partes internas e externas desses jatos d’água, pequenas plataformas que funcionam como pedais. Basta pisar para que elas desativem segmentos da fonte por alguns segundos – o tempo necessário para entrar ou sair da instalação. Mais legal do que a própria instalação é a forma como a gente acaba aprendendo um capítulo tão importante da história do país. Interagir com a fonte faz com que tal experiência se torne inesquecível.

Com isso, uma memória terrível que já data de quase dois séculos é transformada em algo totalmente diferente. Dor vira alegria, cicatriz vira diversão. Um país que já foi tão castigado em alguns dos mais sangrentos e cruéis capítulos da História não teme escancarar seu passado das mais diversas maneiras. Porém, nem todas precisam fazer menção direta a determinados episódios. Transformações são permitidas: uma história de repressão ganha significado oposto, com a “prisão por opção em uma cadeia d’água”.

A opção? É sempre pela liberdade – a mesma que dá nome à praça, e significado à vida dessas pessoas. A mesma liberdade que a gente sente quando conhece uma história dessas de perto.

Hungria, Ir e vir

Caminhando contra o vento

26 de outubro de 2015

A dica de hoje é pra você, que assim como nós está sem grana e adora viajar.

O dia estava apenas começando quando nós já estávamos em Erzsébet tér – uma praça muito bonitinha no centro de Budapeste. Pouco depois duas guias chegaram, com suas plaquinhas vermelhas nas mãos: uma falando em espanhol, outra em inglês. Nos juntamos à segunda, e aos poucos outras pessoas foram chegando e formando um grupo, que não excedia 20 pessoas.

No horário marcado para o início do tour, fomos devidamente apresentados e introduzidos à história da cidade. Numa abordagem rápida e divertida, aprendemos em húngaro (o segundo idioma mais difícil do mundo, segundo a Ursula, tradução de Orsi, e que se pronuncia Órchi) a comunicação básica para socializar com os locais, além do nome da cidade: BUDAPESH – desse jeito mesmo, com aquele S carioca carregado. Nossos planos eram fazer os dois tours no mesmo dia: pela manhã, visitando os principais pontos de Pest e o castelo de buda e seus arredores; à tarde, fazendo o tour comunista, que mostrava as memórias de guerra e terminava no Parlamento.

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Orsi, sua bicicleta, e uma paradinha pra algumas histórias húngaras.

Mais do que falar desses lugares – e falaremos, num momento futuro, nosso texto de hoje é pra reafirmar a eficácia desse tipo de programa. Antes da viagem, fomos aconselhados a fazer todos os walking tours possíveis – e foi um ótimo conselho. Você encontra indicações e opções diversas nos folhetos espalhados pela cidade, em albergues e hotéis, além de poder se juntar a qualquer momento aos grupos que estiverem passando pelas ruas (desde que eles sejam gratuitos, óbvio). Ter um panorama geral da cidade onde você está coloca diversas coisas em perspectiva, e seu aprendizado tem grandes chances de ser muito maior. Se você quiser saber um pouco mais sobre o trabalho dos guias, fizemos um texto sobre isso há um tempinho atrás.

Num primeiro momento, nossos planos foram literalmente por água abaixo ao final do primeiro tour, quando voltamos a Pest para almoçar. Durante o almoço, um pé d’água minou nossas expectativas de chegar ao encontro no horário. Porém, aos dispostos a tudo, saibam que o tour saiu do mesmo jeito, de guarda-chuva e enfrentando um temporal. Pra quem tem poucos dias na cidade, um alento se você tiver coragem. Acabamos fazendo o passeio comunista no segundo dia, pois os tours saíam todos os dias do mesmo local. É só se programar – e nesse caso, torcer pra não chover.

Além das principais atrações e a história de cada uma delas, esse tipo de tour nos permitiu conhecer um pouco da visão de quem vive por lá. As duas guias do Free Budapest Tours* deram depoimentos pessoais sobre a situação econômica e política do país, bem como a herança comunista e as dificuldades da Hungria no atual momento. São coisas que a gente não vai encontrar num folheto, no Trip Advisor ou mesmo no Google (e se encontrar, possivelmente será em húngaro). E poucas coisas numa viagem são tão recompensantes quanto aumentar os limites daquela caixinha de ideias que temos de um lugar desconhecido. Dependendo do tour, essa caixinha explode e a cabeça absorve mais que esponja nova. Uma delícia.

Nosso grupo, sendo apresentado à estátua de Ronald Reagan durante o passeio comunista.

Nosso grupo, sendo apresentado à estátua de Ronald Reagan durante o passeio comunista.

Então, se estiver a fim de conhecer um lugar e estiver sem grana, os Free Walking Tours são um prato cheio. Existem diversos grupos que oferecem esse tipo de serviço, então não se acanhe em perguntar sobre os guias, o trajeto e como tudo funciona. Normalmente é de bom tom dar um troco ao guia ao final do passeio, mas nada é obrigatório (o que não significa que você não possa pelo menos garantir um cafezinho pro sujeito). Passeios desse tipo existem em todos os lugares do mundo – inclusive em São Paulo. Um programa mais que recomendado pra quem não se contenta com aquele eterno mais do mesmo.

A nossa historinha húngara, logo mais 🙂


*Nossos textos não são patrocinados. A gente indica aquilo que a gente gosta/aprova, porque isso também ajuda na viagem alheia. Simples assim.

Causos, Comunicação, Fofuras

Três dicas bacanas, e duas pitadas de coisas boas

27 de julho de 2015

Estávamos planejando nossa viagem dentro da própria viagem – sempre com uma cidade/país de antecedência pelo menos, já com as informações básicas na mão. É um hábito que temos (e um dos pilares desse site, que se diga, pois prezamos pela aventura – desde que ela tenha pelo menos um dedinho de controle e perspectiva). E em nosso mochilão pelo Leste Europeu, após uma semana e 4 países visitados (Romênia, Polônia, República Tcheca e Eslováquia), tínhamos até então uma viagem relativamente tranquila. Nossa quinta parada era a Hungria, e por lá estávamos enquanto este causo se desenrolava.

Causo sim, porque não sabíamos ainda de que maneira chegaríamos ao nosso próximo destino: Zagreb. Estávamos em Budapeste, e em nossas pesquisas (mais) um ônibus parecia ser a forma de locomoção mais adequada até a próxima cidade. Assim que chegamos à capital húngara – mais especificamente no dia seguinte, uma vez que chegamos debaixo de chuva, e com chuva passamos nosso primeiro dia por lá – começamos a pesquisar de que maneira faríamos tal trajeto. Existiam algumas possibilidades, mas como tudo o que pesquisávamos, eram informações novas e de caráter absolutamente desconhecido. E chegamos aqui ao nosso primeiro ponto:

1) Tenha (e não tenha) medo de pessoas

A gente e o Anton - nosso amigo e protagonista das próximas linhas desse texto.

A gente e o Anton – nosso amigo e protagonista das próximas linhas desse texto.

Aprendemos muito cedo (e em outra viagem) que nem todo demônio é vermelho, nem todo anjo tem asas. “É viajando que a gente conhece as pessoas“, profetizou uma pessoa certa vez, e essa é uma verdade irrefutável. Tem gente que se descontrola durante esse período, e exagera – pro bem ou pro mal – em determinadas situações. Portanto, não confie cegamente nos relatos alheios: suas impressões, seu conforto e suas expectativas têm relação direta com a sua personalidade e sua proposta de viagem.

Sendo assim, sempre que pesquisamos “coisas que dependeriam de gente”, procuramos nos informar se aquela REALMENTE era uma boa ideia com os locais. E no caso dessa viagem Budapeste/Zagreb, não foi diferente. Porém, a forma como isso ocorreu que foi engraçada, e nos dá margem à segunda dica:

2) Preste atenção aos sinais

Oras, estávamos num albergue localizado a algumas quadras do centro de Budapeste – mas o casarão, por alum motivo bizarro, era quase que completamente “decorado” com pôsteres, lembranças e coisinhas croatas. “Esse tiozinho não promove a própria cidade? Mas que cacete…” foi meu primeiro pensamento. E resolvemos matar a curiosidade sobre aquele fato perguntando ao gordinho bigodudo de voz fina.

– Eu nasci em Zagreb, mas vim morar em Budapeste.

Decoração náutica, pôsteres de Split, Dubrovnik e Plitvice. Nada de Budapeste... por que?

Decoração náutica, pôsteres de Split, Dubrovnik e Plitvice. Nada de Budapeste… por que?

Explicado, meus amigos. E instantaneamente o senhorzinho (chamado Anton) se tornou nossa fonte mais confiável de informações sobre nossos próximos destinos. Com isso, deixamos o protocolar bom dia/boa noite de lado, e passamos a puxar assunto com o sujeito. O que leva à terceira e última dica desse texto:

3) Amizades acontecem

Assim que chegamos, caía um mundo de chuva. Ficamos ilhados no albergue. Era começo de noite, nossos estômagos estavam nas costas. Resolvemos perguntar ao Anton se seria possível nos emprestar um guarda-chuva para irmos até algum restaurante próximo. Ele nos emprestou duas capas. E capas BACANAS, não aqueles sacos plásticos com capuz. “Pra gente ir tranquilo e voltar quando quiser”, sorrindo. Ganhou de cara nossa simpatia – e alguns bons votos de confiança.

Se não fossem as capas do Anton, não teríamos tido nossa primeira (e acachapante) impressão do prédio mais bonito que já vimos na vida: o Parlamento de Budapeste.

Se não fossem as capas do Anton, não teríamos tido nossa primeira (e acachapante) impressão do prédio mais bonito que já vimos na vida: o Parlamento de Budapeste.

Porém, a maior surpresa aconteceu alguns dias depois, num papo sobre como chegar à Croácia de ônibus. Fomos perguntar ao Anton quais as linhas mais confiáveis, quanto custava, e antes mesmo de engatarmos a segunda pergunta ele nos veio com essa:

– Se vocês esperarem mais dois dias, eu vou pra lá de carro. Vocês podem vir comigo de carona, se quiserem.
– Uou! E quanto sai, Anton?
– Não sai nada, é carona. Vocês vão comigo e eu deixo vocês na rodoviária.
– <3

Dé, esperando a carona pra Croácia, com aquela cara de "a gente se deu bem nessa" - e se deu bem mesmo, meus amigos :)

Dé, esperando a carona pra Croácia, com aquela cara de “a gente se deu bem nessa” – e se deu bem mesmo, meus amigos 🙂

E numa viagem em que toda grana poupada é uma bênção, a economia pode estar num papo bacana com alguém ainda mais bacana. Antes que perguntem: claro que não dá pra confiar em todo mundo, muito menos tomar isso tudo como regra. Mas são possibilidades, que existem pra valer. No mundo existem dois tipos de pessoas: as boas e as ruins. E elas estão por aí, espalhadas pelo mundo. Se a gente tiver um mínimo de inteligência e sagacidade (sempre quis usar essa palavra num texto) e ficar atento aos lugares e pessoas que passam pela gente, a chance de termos boas surpresas é enorme.

Vale pra viagem, mas vale pra vida também 🙂

Hungria

Terror Háza

8 de junho de 2015

Você está passeando em uma das principais avenidas de Budapeste, quando de longe avista um edifício que se destaca naturalmente. Está em uma esquina. Sua arquitetura é muito bonita e bem preservada (assim como a grande maioria dos prédios da cidade). Porém, o diferencial está lá em cima: uma espécie de letreiro em negativo, que funciona quase como cobertura, e ao mesmo tempo projeta em letras agressivas aquilo que define sua história: TERROR. Estamos falando de Terror Háza, cuja tradução literal é “casa do terror“.

Obviamente, não é um museu comum. É um prédio com mais de 130 anos que serviu como sede da polícia secreta soviética, durante os tempos de ocupação húngara, logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa ocupação durou aproximadamente 40 anos, terminando somente em 1990. Pra quem está de fora e chega em Budapeste, é uma verdadeira overdose de informações aquilo que a cidade oferece em diversos pontos, que misturam o passeio ao ar livre a verdadeiros memoriais. Pode parecer algo pesado, ou “forçado” para nós, que não vivemos esse período (dessa maneira, tivemos nossa ditadura, e todo período de repressão e censura deve ser levado muito a sério), mas é algo natural para os húngaros. O país possui uma história riquíssima e extremamente dolorosa, que permanece viva e aflorada em seu povo. Terror Háza possui três andares e um subsolo que reafirmam essa máxima. Budapeste foi totalmente destruída durante a Segunda Guerra, e sua reconstrução (bem como a de todo o país) mostra a força de todo um povo. Ainda do lado de fora do prédio, um enorme cordão de pequenas fotos de vítimas do regime deixa isso mais evidente.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Logo na entrada do prédio – assim como em sua moldura externa, os dois símbolos principais do regime: as setas, do Partido das Setas Cruzadas (Nyilaskeresztes Párt-Hungarista Mozgalom), que nada mais era do que o partido nazista húngaro, organização fascista que também tinha como alvo os judeus; e a estrela, do ÁVH (Államvédelmi Hatóság), a polícia secreta húngara. Ainda no térreo, um enorme tanque de guerra em cima de uma piscina de óleo, rodeado de fotos de prisioneiros do prédio deixa claro que o passeio não será para estômagos fracos.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

O tour é feito de cima para baixo, começando portanto pelo último andar. Após a transformação do prédio em museu, as salas foram transformadas em sessões históricas, que narram cronologicamente o período de dominação do país pelas organizações fascistas e comunistas citadas logo acima. Existe todo um aparato áudio-visual que transforma cada setor em uma experiência intensa – por vezes claustrofóbica, outras de esperança, empatia, de dor e sofrimento, e num conjunto geral algo que você acaba levando debaixo da pela quando sai dali.

A primeira sala mostra como a Hungria teve seu território fragmentado, ocupado, desocupado e reagregado por uma dezena de vezes. Essa história divide espaço com filmes da época, que mostram a ocupação nazista antes da chegada dos soviéticos. Telefones nas paredes transmitem mensagens de rádio daquele período, dependendo do número que você escolha discar. Um enorme carro preto dá a impressão que vai te sequestrar assim que as luzes se apagam e o som abafa.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

O passeio segue, por corredores de letras metálicas, que levam a uma sala de reunião onde estão expostos na parede os uniformes dos oficiais do exército e do serviço secreto. Novamente, telefones trazem pronunciamentos e gravações da época (todos em húngaro). Dali adiante existe uma espécie de vestiário, onde dois manequins com uniformes giram ao centro. Na sala ao lado, pequenas mesas de interrogatório.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

Uma sala ampla, com um enorme mapa impresso no carpete, guarda em cones metálicos invertidos alguns ítens carregados por soldados, sobreviventes e prisioneiros durante o período. Nas paredes, esses mesmos personagens e suas famílias se revezam contando suas histórias. Sem a menor dúvida, uma das instalações mais densas e dramáticas do museu.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

Pouco adiante, cabines com propagandas políticas da época, escondidas sob cortinas vermelhas e imagens de Stalin. O discurso, todos sabemos, é sobre a excelência do poder, e “seu reflexo no bem-estar da população”. Na mesma sala, uma verdadeira parafernália mostra o quão complexa era a ação de espionagem naquela época. Novamente, telefones e pequenos aparelhos de áudio trazem mensagens gravadas. A seguir, uma pequena sala, com bens de Stalin e de alguns membros do seu partido.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

Em outro espaço, uma especie de labritinto feito com tijolos de sabão faz com que o visitante se perca numa imensidão branca, terminando seu passeio em uma cela. Próximo dali, uma instalação com diversos utensílios, que mais parece uma cozinha gigante prateada, expõe todo o tipo de produção operária feita pelos prisioneiros – de marmitas a panelas, de ferramentas a objetos decorativos.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

Uma espécie de auditório, montado com folhas de jornal do chão ao teto, faz alusão à censura da época, com uma sala secreta repleta de escutas escondida na parede direita. Seguindo dali, damos numa espécie de galpão, com uma enorme cruz luminosa no chão. Nas paredes, objetos sacros e vestimentas de bispos, escancarando o comprometimento religioso ao regime da época.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

O passeio termina no subterrâneo do prédio, onde estão as áreas de maior impacto. Um enorme memorial, de luzes vermelhas e cruzes metálicas representa um pequeno número dos milhares de mortos naquele lugar. Diversas armas estão expostas perto dali, e a baixa iluminação te aproxima ainda mais dessa sensação de agonia.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

Perto dali, alguns televisores contam histórias de pessoas que perderam familiares naquele local. Uma bicileta exposta, roupas penduradas, objetos de operários e um enorme carrinho repleto de pedras ilustram essas histórias (todas em húngaro, com legendas em inglês). E eu confesso que saí dali chorando.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Num último corredor, o acesso às celas e solitárias de quem teve sua vida sentenciada em Terror Háza. Não há nenhum aparato de som, sendo as instalações fiéis ao que eram na época: cubículos cercados, alguns com uma espécie de cama ou colchão, salas de tortura e até mesmo uma forca. Algumas televisões em determinados pontos mostram esses mesmos lugares no momento em que foram encontrados – seu estado de podridão e desumanidade. É chocante.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

Terror Háza é uma visita obrigatória em Budapeste. Reserve uma manhã, faça uma refeição leve e prepare o coração. Não há glamour nem diversão num passeio tão intenso, mas o que se leva dali é muito mais do que um souvenir (que sim, existe – eu inclusive tenho um aqui, na minha mesa): a gente aprende muito sobre o ser humano, e o quanto ele é capaz de ir do mais baixo ao mais grandioso. E nenhum livro de História é capaz de botar essas lições na sua cabeça com tanta ênfase quanto um sobrevivente desse período maldito na história da humanidade.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Fotos no interior do museu são proibidas. Por isso mesmo quase todas as fotos deste texto foram retiradas do site oficial de Terror Háza. Apesar disso, você encontra mais fotos de lá numa rápida busca pelo Google. É que a gente também faz apologia ao turismo respeitoso – e não ao sem-noção. Porém, encontramos uma galeria de panorâmicas (autorizada e bonitinha) que permite um passeio lá dentro, e dá pra ver alguns desses ambientes bem de pertinho. Acesse aí: http://www.panoramablog.eu/media/budapest/terrorhaza/terrorhaza.html

Faniquito

Quando machuca

30 de abril de 2015

O texto de hoje é um pouco diferente.

Ele levanta uma questão que vem tomando minha atenção há algum tempo, mais especificamente, desde que soubemos que nossa viagem a Auschwitz “não foi algo tão bem recebido” por algumas pessoas – umas mais próximas, outras nem tanto. Entenda-se pela expressão entre aspas como uma forma simplista de tentar traduzir por vezes inconformismo, por outras perplexidade o fato de termos visitado um local cuja história é notoriamente triste, e de um contexto cujas explicações são desnecessárias.

“Não dá pra entender… ir pra um lugar desses, nas férias? Uma época pra se divertir, não pra… isso. Quem sai de casa pra ficar deprimido? Ver esses horrores, isso acaba com qualquer clima, não relaxa. Não faz sentido, não é pra mim. Eu nunca iria…”

Antes de qualquer coisa: é uma reflexão válida, e possui algum sentido.

De fato a primeira coisa que a gente imagina quando pensa em férias é “aproveitar o tempo livre“. É a maior das verdades. Pra muitos, significa poder fazer nada, ou usar aquelas poucas semanas disponíveis pra “condensar a felicidade” em passeios, compras, reuniões, almoços e visitas. “Pensar férias” pode significar um “momento margarina“: normalmente é essa a ideia vendida em qualquer material promocional turístico. Não existem pessoas sozinhas, tristes ou introspectivas nos anúncios de viagens. Aparentemente, as férias significam que após um ano de trabalho duro, finalmente chegamos lá – e quando você chega lá, acorda, passa o dia e dorme sorrindo. Pode parecer besteira, mas a gente morde essa isca, mesmo sem querer. É hora de desligar. E quem desliga, não quer pensar muito.

– Tristeza? Longe de mim. Choque? Já não me chega esse cotidiano terrível, essa coisa corrosiva…? Eu não vou usar meu pouco tempo livre tentando entender a dor e o sofrimento alheio. Isso é coisa de masoquista,

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Pois bem. Entendido o outro lado, vou expor o meu.

Já estivemos em alguns lugares cuja descrição é oposta ao pensamento acima: prisões, campos de concentração, instalações militares, ruínas de guerra, museus de tortura, etc. Antes de qualquer coisa: gostamos do assunto – eu, especialmente, tenho um fascínio inexplicável por esse tipo de coisa, e não é de hoje. Tem gente que enlouquece num free shop, outros que voltam encantados com hotéis e restaurantes espetaculares, tem quem se derreta por museus e pontos turísticos, e mais alguns que capotam com a beleza da natureza (também faço parte desse grupo de uns tempos pra cá). Mas minha principal motivação tem base no ser humano, sua essência e complexidade – eu não posso negar.

Talvez por isso encontrá-lo num contexto limítrofe seja algo tão incrível.

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Nossa vida cotidiana é na maioria das vezes estabelecida em uma rotina muito parecida, com mais ou menos poder aquisitivo, regrada por uma política aberta e com liberdade de expressão (esqueçam bandeiras e porta-vozes, mirem somente no contexto). Entrar em contato – mesmo que minimamente e de forma quase superficial – com outro tipo de realidade é uma experiência transformadora, no sentido mais escancarado da expressão. Mesmo com tanta imagem pronta, tanta referência histórica, tanto filme e tanto livro, sequer arranhamos a possibilidade de que certos acontecimentos tenham de fato ocorrido. Que tais coisas tenham existido. Enfim, que aquilo seja de verdade, e não cenário montado. Nada te prepara pra isso, e viajar para esses lugares exige sim estômago, alguma coragem e muito coração.

Somos pessoas que normalmente passam longe desses limites. Saber de histórias in loco, conhecer personagens (heróis, vilões ou simplesmente ilustres desconhecidos), pisar, tocar e ver certas coisas quebra a fantasia e nos transporta pra realidade mais distante e impensável possível. Pra quem imagina que essa jornada seja nociva, eu respondo que essa talvez seja uma das poucas – senão a única maneira de nos colocarmos no lugar de um desses personagens. E a vida nos ensina que essa passagem é a forma mais efetiva de mudarmos nossa maneira de agir e reagir a determinadas situações, coisas ou pessoas. Calçar os sapatos alheios pode nos trazer conforto ou incômodo, mas com certeza não nos deixa indiferente aos passos que se seguem.

Memorial "Sapatos às Margens do Danúbio" (Hungria)

Memorial “Sapatos às Margens do Danúbio” (Hungria)

Mas quem – estando de férias – quer se colocar no lugar de um prisioneiro? De um escravo? De um soldado? Um carrasco? Um nazista?

Pois é. Não é somente entrar em contato: é encarnar o personagem. Entender de dentro, sem intervalos comerciais, palavras cuidadosas ou tempo pra respirar. Sim, é uma experiência fortíssima, mas faz nossa mente abrir e nunca mais voltar ao tamanho de antes. Aquele sentimento distante vira perplexidade. Como era possível fazerem isso? Como esses caras aguentavam? Quem conseguia levar uma vida assim? Você vai embora com quilos e quilos de interrogações incômodas, mas necessárias pra nossa evolução pessoal. Deixamos por lá os preconceitos, o medo e o ranso. Às vezes ganhamos desgosto por aquilo que fomos capazes de fazer um dia, mas ele funciona como uma tatuagem: você leva consigo, e não repassa. Aquilo é seu, e pra sempre será.

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Enfim… aos que duvidam ou desgostam desse tipo de viagem, ou de sua proposta, eu deixo um pensamento: a vida não é feita somente de felicidade. Às vezes as grandes obras – que tanto admiramos e tomamos de exemplo – são deixadas por pessoas que sofreram com dores, castigos e penas impensáveis pra gente. Mais importante do que valorizar o resultado é entender o processo – e ele nem sempre acontece num caminho de flores. Portanto, entrar em contato com aquilo que fomos capazes de fazer um dia só nos faz crescer, mesmo de uma maneira que não pareça ideal num primeiro momento. Pro bem ou pro mal, o ser humano evolui todos os dias. Não tenha medo de evoluir alguns anos em poucas horas – porque no fim das contas, é isso o que de fato acontece.