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Nazismo

Polônia

Arbeit macht frei (2/2)

23 de novembro de 2015

Ao contrário da ida para Auschwitz I, o caminho para Auschwitz II-Birkenau serviu pra gente descansar um pouco a cabeça e as pernas. Mesmo sendo uma distância curta, um pequeno intervalo era mais que necessário. Alguns minutos depois, estávamos no portão de entrada.

É bem difícil descrever esse novo impacto, uma vez que o tamanho do campo é totalmente discrepante de qualquer percepção que a gente possa ter por filmagens ou fotos. Em frente à entrada, olhando para ambos os lados, é impossível definir onde termina a área de Auschwitz II-Birkenau. Aguardamos nossa guia, e pouco depois estávamos entrando.

Em frente ao portão de entrada (e também a entrada dos trens, no período).

Em frente ao portão de entrada (e também a entrada dos trens, no período).

À esquerda, uma enormidade.

À esquerda, uma enormidade.

À direita, não enxerga-se onde termina.

À direita, não enxerga-se onde termina.

Uma tentativa fracassada de mostrar o todo.

Uma tentativa fracassada de mostrar o todo.

A vastidão era ainda maior. Andávamos em ritmo acelerado em meio aos trilhos, que naquela época traziam os trens então repletos de prisioneiros. Vários grupos de visitantes se espalhavam no local, e os olhos procuravam as referências tão conhecidas daquele verdadeiro matadouro. O cenário novamente era de um verde vivo e melancólico, com horizontes planos a perder de vista. A tarde era nublada, com uma leve chuva que ia e vinha. Novamente, parecia que o tempo acompanhava nossas emoções.

O espaço gigantesco dispersa a impressão de multidão, mas ela existia.

O espaço gigantesco dispersa a impressão de multidão, mas ela existia.

Pouco depois de entrar, era essa a visão de quem olhava pra trás...

Pouco depois de entrar, era essa a visão de quem olhava pra trás…

...e olhava novamente para a frente.

…e olhava novamente para a frente.

Paramos adiante próximos a um dos vagões, mantido no local. Dali em diante seguiram-se as explicações de como era feita a chegada dos prisioneiros, e sua ordem de execução: crianças, idosos e outras pessoas com capacidade física prejudicada eram os primeiros a serem enviados para a câmara de gás. A “solução final para o problema judeu” parecia ainda mais cruel quando imaginada em tais dimensões. Auschwitz II-Birkenau foi pensada para aliviar a capacidade do campo anterior, então excedente. Desmonte essa frase e pense no que exatamente ela quer dizer, e me diga se é possível ficar indiferente a tamanha atrocidade.

Um dos vagões, que traziam os prisioneiros...

Um dos vagões, que traziam os prisioneiros…

...e um pequeno memorial em seu degrau.

…e um pequeno memorial em seu degrau.

Seguimos adiante até chegar na área oposta à entrada do campo de concentração. Um memorial com placas em homenagem aos refugiados que estiveram em Auschwitz II-Birkenau – em seus respectivos idiomas, além de uma em inglês para a compreensão da mensagem por todos os visitantes.

“Para eternizar neste lugar um grito de desespero e uma advertência para a humanidade, onde os nazistas assassinaram cerca de um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, judeus principalmente vindos de vários países da Europa.
Auschwitz-Birkenau 1940 – 1945”

As placas, em diversos idiomas.

As placas, em diversos idiomas.

Olhando novamente em direção à entrada, uma ideia da distância percorrida.

Olhando novamente em direção à entrada, uma ideia da distância percorrida.

Uma perspectiva real das distâncias da entrada (1), do vagão (2) e do memorial com as placas (3).

Uma perspectiva real das distâncias da entrada (1), do vagão (2) e do memorial com as placas (3).

Ali mesmo, fomos todos para o lado esquerdo. As ruínas que estavam logo abaixo eram aquilo que restou de uma das câmaras de gás, destruídas pelos próprios nazistas, que tentaram apagar as evidências da barbárie pouco antes da chegada do exército soviético – como se isso fosse possível. A proximidade de um local desses, mesmo tão descaracterizado, era tão perturbadora quanto a impressão que tivemos ao visitar a câmara de Auschwitz I.

Os escombros das câmaras de gás, totalmente...

Os escombros das câmaras de gás, totalmente…

...ou parcialmente descaracterizadas.

…ou parcialmente descaracterizadas.

Pouco adiante, entramos em um dos galpões de tijolos, cujo visual quebra a imensidão verde dos campos. Eram dois os tipos de galpão existentes em Auschwitz II-Birkenau: os de tijolos abrigavam às mulheres, enquanto os de madeira aos homens. E abrigar é uma forma muito educada de descrever o que de fato acontecia no interior desses galpões. O chão era de terra e lama, com higiene inexistente. Acumulava-se ali todo tipo de dejeto, enquanto os prisioneiros se amontoavam em verdadeiros cubículos. Um lugar onde caberiam no máximo 4 pessoas abrigava de 20 a 30. A impressão nas fotos não é distorcida: é inconcebível a possibilidade desse número absurdo conseguir sobreviver nessas condições – e era exatamente esse o desejo nazista.

De 20 a 30 mulheres eram amontoadas em cada uma dessas células.

De 20 a 30 mulheres eram amontoadas em cada uma dessas células.

Parece impossível, como toda e qualquer informação que tivemos nesse dia.

Parece impossível, como toda e qualquer informação que tivemos nesse dia.

No caso dos barracões onde eram alojados os homens, somente a base resistiu à queima de arquivo nazista. Sendo de madeira, foram incendiados antes da chegada dos soviéticos, restando a fundação como memória dos espaços. Estávamos quase no final do tour, enquanto caminhávamos entre os outros galpões.

Enquanto os barracões femininos permanecem preservados...

Enquanto os barracões femininos permanecem preservados…

...pouco restou dos masculinos.

…pouco restou dos masculinos.

Já próximos ao portão de entrada novamente, nossa guia agradeceu a todos pela presença, contou sobre sua própria preparação para aquele trabalho, e que se esforçava ao máximo para relatar os acontecimentos de forma mais precisa, detalhada e respeitosa a todos, de forma que as lições daquele dia nunca mais se perdessem.

Nossa conclusão sobre a experiência em Auschwitz é aquela que tínhamos como expectativa antes de pensar o destino de nossa viagem: algo transformador, em muitos aspectos. Doloroso, complexo, absurdo de tão distante da nossa realidade. Mas nesses tempos em que a intolerância brota inadvertidamente dos lugares mais inesperados, o aviso expresso na placa em homenagem aos que lá estiveram nos parece cada vez mais necessário. Sentir na pele um lugar tão importante na História da humanidade nos devastou, a ponto de voltarmos para Cracóvia em silênco e mentalmente exaustos. Dali em diante, vivemos e revivemos aqueles momentos a cada informação já conhecida ou ainda não sobre os horrores da Segunda Guerra – e todas as outras, relativas ou diretamente ligadas a atitudes absurdas promovidas pelo ser humano. Recomendamos sim a visita aos campos. Aprender sobre nossa essência, e sobre o que somos capazes de fazer quando nossa vida é movida pelo ódio e pelo preconceito é uma lição da qual jamais esqueceremos.

Polônia

Arbeit macht frei (1/2)

19 de novembro de 2015

Visitar Auschwitz foi possivelmente a experiência mais marcante da minha vida.

Em um texto anterior, expliquei minha fascinação por assuntos de guerra, seus memoriais e como isso me emociona. Há algum tempo estou ensaiando pra escrever esse texto, uma vez que – imagino – nenhum tipo de explicação seja capaz de quantificar o impacto que estar num campo de concentração, num presídio ou ruína causa na gente. Então cheguei à conclusão de que, ao invés de descrever como foi o dia de visita, melhor contar desordenadamente como um único dia foi capaz de mudar minha cabeça pra sempre. Não será a última vez que falaremos de Auschwitz por aqui (futuramente a Dé contará a história dela, da forma que quiser), e explico isso por fazer questão que esse relato seja algo totalmente meu, mesmo.

Ao adquirir o tour para Auschwitz, você visita dois locais: Auschwitz I durante a manhã (os famosos prédios de tijolos, construídos para servirem de alojamento à artilharia nazista, e que posteriormente foram transformados em campos de concentração), e Auschwitz II-Birkenau à tarde (o campo de extermínio, onde os trens desembarcavam os judeus para execução). Auschwitz não é Auschwitz, mas sim a pequena cidade de Oświęcim, rebatizada durante o domínio alemão com o famoso nome. Nosso tour saía da Cracóvia, e a distância de aproximadamente 70 km serviu para preparar o grupo para o que viria a seguir. Na própria van, o documentário Die Befreiung von Auschwitz (A Libertação de Auschwitz) foi assistido em silêncio sepucral durante uma hora. Devo ter chorado umas 3 ou 4 vezes, e não fui o único. Trata-se do registro cinematográfico oficial feito pelos soviéticos quando da libertação dos campos, e as imagens são EXTREMAMENTE fortes. O vídeo completo (com narração em inglês, assim como assistimos) está disponível logo abaixo. As cenas são fortíssimas, e não recomendadas a estômagos mais sensíveis.

A chegada ao campo já traz esse desconforto, e dali em diante uma guia e sua acompanhante – funcionária designada pelo próprio Museu de Auschwitz, com a função de evitar qualquer distorção aos fatos reais – acompanham o grupo. As explicações são feitas por meio de rádio, e são distribuídos fones e decodificadores aos visitantes. Com isso, mesmo com a verdadeira multidão presente (e distribuída em diversos e esparsos grupos), o silêncio impera quando se passar pelo portão principal. Passar pelo letreiro Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”) tem o impacto de ser pisoteado por um gigante. As costas pesam. Mesmo sendo um lugar tão conhecido, é impossível ficar indiferente e não imaginar o que de fato aconteceu com as pessoas que pisaram naquele mesmo chão um dia. As imagens em preto e branco dão espaço a uma realidade de cores terrosas e muito bonitas – pode parecer absurdo dizer isso, mas sim: Auschwitz I é um lugar belíssimo (não esquecendo que antes de se tornar o que se tornou, seus prédios eram um alojamento). Todo o cuidado e estrutura de hoje obviamente contrastam com o estado das instalações no período em que foram utilizadas.

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

Os passos são lentos entre as alamedas, agora livres dos cercados da época (porém, alguns corredores permanecem intactos, cercados por arame farpado e totalmente claustrofóbicos). Grande parte dos edifícios é aberta à visitação, abrigando o museu que dá nome ao complexo: fotos dos prisioneiros, mapas estatísticos, uniformes, objetos pessoais, manchetes de jornal, infográficos, maquetes e estátuas ocupam seus interiores. Numa determinada área, uma simulação de fluxo de prisioneiros até a morte nas câmaras de gás, e uma lata de Zyklon-B (pesticida à base de cianureto, “a grande descoberta dos nazistas para extermínio de massa a baixo custo, uma vez que os fuzilamentos eram demorados e caros, dada a quantidade de balas gasta pelo exército nazista“).

Os corredores cercados.

Os corredores cercados.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

Uma das áreas mais impressionantes era sem dúvida a adaptação do espaço interno em um prédio, onde acumulavam-se os pertences pessoais dos prisioneiros. Com a promessa de trabalho no local, os judeus chegavam carregando em mãos aquilo que podiam. Após sua chegada, tudo lhes era tirado (ou melhor, roubado) pelo exército nazista, separado e guardado. Malas, sapatos, próteses, pincéis de barba, aparelhos de barbear, xícaras e até mesmo urinóis estão expostos em vitrines enormes.

Mas nada é mais chocante do que uma das vitrines, onde está acumulado todo o cabelo raspado das mulheres mortas nas câmaras de gás. Os nazistas utilizavam esse cabelo para a fabricação de sacos. Confesso que nesse momento me sinto nauseado tentando descrever essa cena, da qual não temos registro fotográfico (por proibição explícita na sala). Mas faz-se necessário o registro, e ele existe – na internet, efetuado por pessoas que desrespeitaram esse aviso. Não destacaríamos esse tipo de desrespeito aos regimentos internos de qualquer lugar, mas provar sua existência é necessário – pois é racionalmente inconcebível acreditar que um dia isso aconteceu.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

Dentro dos prédios, fotos são proibidas na maioria das áreas – possivelmente para facilitar a fluidez no fluxo dos diversos grupos de visitantes. Quando permitidas, somente sem flash. O tempo para as mesmas é bastante reduzido – porém, é possível fazê-las sem correria e com qualidade. A maioria dos ítens de época são preservados em cabines de vidro, enquanto diversos painéis detalham todo tipo de informação pertinente. A comunicação interna é feita de forma sóbria, direta e extremamente didática, não deixando margem para interpretações erradas sobre o que está relatado.

Em algumas áreas, salas inteiras permanecem preservadas e/ou restauradas. Alojamentos dos prisioneiros, algumas salas onde operava o comando do exército nazista, e no subsolo que pudemos visitar, celas tão minúsculas que os prisioneiros encarcerados tinham sua musculatura forçada ao extremo quando “encaixados” naqueles cubículos, com morte certa em um curto período de tempo. Mesmo com as explicações cuidadosas da guia, o cenário era desolador e cada vez mais inacreditável.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Sobre as explicações dadas durante o tour, vale um adendo: o cuidado e a delicadeza em tratar o assunto sem ofender este ou aquele povo é notável. Em nenhum momento mistura-se o povo alemão à mentalidade presente no comando nazista, e seu maior expoente – cuja nacionalidade, não esqueçamos, é austríaca. Parece pouco, mas separar muito bem as coisas é um dever histórico dos mais importantes.

Viajar no tempo é um exercício constante durante o tour, e se colocar no lugar daquelas pessoas é inevitável. Não há um minuto em que sua cabeça não esteja funcionando sob um prisma de um prisioneiro – ou de um nazista. Sim, é hipocrisia dizer que a gente só se coloca no papel do massacrado, quando o maior desafio é tentar entender a cabeça de quem massacra. Por isso mesmo, você acaba por diversas vezes tentando entender o personagem, mesmo sem querer. Absurdo dizer isso? Desumano? Não amigos… eu garanto: o desgaste mental ao final do dia tem muito a ver com esse exercício involuntário, de tentar compreender o incompreensível.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível...

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível…

...bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

…bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

Dos momentos mais pesados que tivemos lá dentro, destaco três:

– Uma área entre dois prédios, onde encontra-se o muro de fuzilamento. O espaço tornou-se um pequeno memorial, que estava cercado de flores. No alto, atrás da parede de tijolos que une os blocos 10 e 11, uma bandeira que faz alusão aos uniformes dos prisioneiros – com listras azuis e um triângulo vermelho invertido.

A lembrança dos prisioneiros.

A lembrança dos prisioneiros.

E sua terrível sentença final.

E sua terrível sentença final.

– A forca onde Rudolf Höss – comandante do campo de concentração – foi executado. Quase no fim do tour da manhã, poderia ser um fechamento “positivo” para tanta desgraça relatada durante a manhã (na minha cabeça e pelos meus valores, não existe nazista que mereça perdão – e eu posso dizer isso de consciência muito tranquila).

O último ato de Rudolf Höss.

O último ato de Rudolf Höss.

– Visitamos uma câmara de gás, por dentro. Entrar naquele pequeno galpão foi uma das sensações mais sufocantes e dolorosas de todo o dia (e posso dizer, da minha vida). São poucos segundos de escuridão, interrompida por lâmpadas amareladas e pequenos feixes de luz vindos dos buracos do teto, onde era despejado o Zyklon-B. Marcas na parede, silêncio, até sua respiração parece ecoar enquanto você absorve uma das maiores crueldades pensadas pelo ser humano. Sair de lá, olhar pra trás e imaginar o que aquele lugar – hoje inofensivo – já foi um dia é tão, mas tão pesado e terrível, que é impossível não sair rasgado de dentro pra fora.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror... é impossível definir o que se sente ali dentro.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror… é impossível definir o que se sente por ali.

Obviamente foi o último ponto antes do período do “descanso” entre os dois tours, pois não há emocional que resista. Todo mundo precisa dessa pausa, para voltar à própria realidade, almoçar/lanchar e se recuperar um pouco para a segunda parte do dia. Comemos alguma coisa, voltamos para a van e esperamos o grupo se reunir. O dia estava cinzento, com ameaça de chuva leve. Eu acredito que até mesmo o clima reforçava as sensações daquela visita.

Contarei sobre Auschwitz II-Birkenau no próximo texto.

Hungria

Terror Háza

8 de junho de 2015

Você está passeando em uma das principais avenidas de Budapeste, quando de longe avista um edifício que se destaca naturalmente. Está em uma esquina. Sua arquitetura é muito bonita e bem preservada (assim como a grande maioria dos prédios da cidade). Porém, o diferencial está lá em cima: uma espécie de letreiro em negativo, que funciona quase como cobertura, e ao mesmo tempo projeta em letras agressivas aquilo que define sua história: TERROR. Estamos falando de Terror Háza, cuja tradução literal é “casa do terror“.

Obviamente, não é um museu comum. É um prédio com mais de 130 anos que serviu como sede da polícia secreta soviética, durante os tempos de ocupação húngara, logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa ocupação durou aproximadamente 40 anos, terminando somente em 1990. Pra quem está de fora e chega em Budapeste, é uma verdadeira overdose de informações aquilo que a cidade oferece em diversos pontos, que misturam o passeio ao ar livre a verdadeiros memoriais. Pode parecer algo pesado, ou “forçado” para nós, que não vivemos esse período (dessa maneira, tivemos nossa ditadura, e todo período de repressão e censura deve ser levado muito a sério), mas é algo natural para os húngaros. O país possui uma história riquíssima e extremamente dolorosa, que permanece viva e aflorada em seu povo. Terror Háza possui três andares e um subsolo que reafirmam essa máxima. Budapeste foi totalmente destruída durante a Segunda Guerra, e sua reconstrução (bem como a de todo o país) mostra a força de todo um povo. Ainda do lado de fora do prédio, um enorme cordão de pequenas fotos de vítimas do regime deixa isso mais evidente.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Logo na entrada do prédio – assim como em sua moldura externa, os dois símbolos principais do regime: as setas, do Partido das Setas Cruzadas (Nyilaskeresztes Párt-Hungarista Mozgalom), que nada mais era do que o partido nazista húngaro, organização fascista que também tinha como alvo os judeus; e a estrela, do ÁVH (Államvédelmi Hatóság), a polícia secreta húngara. Ainda no térreo, um enorme tanque de guerra em cima de uma piscina de óleo, rodeado de fotos de prisioneiros do prédio deixa claro que o passeio não será para estômagos fracos.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

O tour é feito de cima para baixo, começando portanto pelo último andar. Após a transformação do prédio em museu, as salas foram transformadas em sessões históricas, que narram cronologicamente o período de dominação do país pelas organizações fascistas e comunistas citadas logo acima. Existe todo um aparato áudio-visual que transforma cada setor em uma experiência intensa – por vezes claustrofóbica, outras de esperança, empatia, de dor e sofrimento, e num conjunto geral algo que você acaba levando debaixo da pela quando sai dali.

A primeira sala mostra como a Hungria teve seu território fragmentado, ocupado, desocupado e reagregado por uma dezena de vezes. Essa história divide espaço com filmes da época, que mostram a ocupação nazista antes da chegada dos soviéticos. Telefones nas paredes transmitem mensagens de rádio daquele período, dependendo do número que você escolha discar. Um enorme carro preto dá a impressão que vai te sequestrar assim que as luzes se apagam e o som abafa.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

O passeio segue, por corredores de letras metálicas, que levam a uma sala de reunião onde estão expostos na parede os uniformes dos oficiais do exército e do serviço secreto. Novamente, telefones trazem pronunciamentos e gravações da época (todos em húngaro). Dali adiante existe uma espécie de vestiário, onde dois manequins com uniformes giram ao centro. Na sala ao lado, pequenas mesas de interrogatório.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

Uma sala ampla, com um enorme mapa impresso no carpete, guarda em cones metálicos invertidos alguns ítens carregados por soldados, sobreviventes e prisioneiros durante o período. Nas paredes, esses mesmos personagens e suas famílias se revezam contando suas histórias. Sem a menor dúvida, uma das instalações mais densas e dramáticas do museu.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

Pouco adiante, cabines com propagandas políticas da época, escondidas sob cortinas vermelhas e imagens de Stalin. O discurso, todos sabemos, é sobre a excelência do poder, e “seu reflexo no bem-estar da população”. Na mesma sala, uma verdadeira parafernália mostra o quão complexa era a ação de espionagem naquela época. Novamente, telefones e pequenos aparelhos de áudio trazem mensagens gravadas. A seguir, uma pequena sala, com bens de Stalin e de alguns membros do seu partido.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

Em outro espaço, uma especie de labritinto feito com tijolos de sabão faz com que o visitante se perca numa imensidão branca, terminando seu passeio em uma cela. Próximo dali, uma instalação com diversos utensílios, que mais parece uma cozinha gigante prateada, expõe todo o tipo de produção operária feita pelos prisioneiros – de marmitas a panelas, de ferramentas a objetos decorativos.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

Uma espécie de auditório, montado com folhas de jornal do chão ao teto, faz alusão à censura da época, com uma sala secreta repleta de escutas escondida na parede direita. Seguindo dali, damos numa espécie de galpão, com uma enorme cruz luminosa no chão. Nas paredes, objetos sacros e vestimentas de bispos, escancarando o comprometimento religioso ao regime da época.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

O passeio termina no subterrâneo do prédio, onde estão as áreas de maior impacto. Um enorme memorial, de luzes vermelhas e cruzes metálicas representa um pequeno número dos milhares de mortos naquele lugar. Diversas armas estão expostas perto dali, e a baixa iluminação te aproxima ainda mais dessa sensação de agonia.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

Perto dali, alguns televisores contam histórias de pessoas que perderam familiares naquele local. Uma bicileta exposta, roupas penduradas, objetos de operários e um enorme carrinho repleto de pedras ilustram essas histórias (todas em húngaro, com legendas em inglês). E eu confesso que saí dali chorando.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Num último corredor, o acesso às celas e solitárias de quem teve sua vida sentenciada em Terror Háza. Não há nenhum aparato de som, sendo as instalações fiéis ao que eram na época: cubículos cercados, alguns com uma espécie de cama ou colchão, salas de tortura e até mesmo uma forca. Algumas televisões em determinados pontos mostram esses mesmos lugares no momento em que foram encontrados – seu estado de podridão e desumanidade. É chocante.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

Terror Háza é uma visita obrigatória em Budapeste. Reserve uma manhã, faça uma refeição leve e prepare o coração. Não há glamour nem diversão num passeio tão intenso, mas o que se leva dali é muito mais do que um souvenir (que sim, existe – eu inclusive tenho um aqui, na minha mesa): a gente aprende muito sobre o ser humano, e o quanto ele é capaz de ir do mais baixo ao mais grandioso. E nenhum livro de História é capaz de botar essas lições na sua cabeça com tanta ênfase quanto um sobrevivente desse período maldito na história da humanidade.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Fotos no interior do museu são proibidas. Por isso mesmo quase todas as fotos deste texto foram retiradas do site oficial de Terror Háza. Apesar disso, você encontra mais fotos de lá numa rápida busca pelo Google. É que a gente também faz apologia ao turismo respeitoso – e não ao sem-noção. Porém, encontramos uma galeria de panorâmicas (autorizada e bonitinha) que permite um passeio lá dentro, e dá pra ver alguns desses ambientes bem de pertinho. Acesse aí: http://www.panoramablog.eu/media/budapest/terrorhaza/terrorhaza.html

Faniquito

Quando machuca

30 de abril de 2015

O texto de hoje é um pouco diferente.

Ele levanta uma questão que vem tomando minha atenção há algum tempo, mais especificamente, desde que soubemos que nossa viagem a Auschwitz “não foi algo tão bem recebido” por algumas pessoas – umas mais próximas, outras nem tanto. Entenda-se pela expressão entre aspas como uma forma simplista de tentar traduzir por vezes inconformismo, por outras perplexidade o fato de termos visitado um local cuja história é notoriamente triste, e de um contexto cujas explicações são desnecessárias.

“Não dá pra entender… ir pra um lugar desses, nas férias? Uma época pra se divertir, não pra… isso. Quem sai de casa pra ficar deprimido? Ver esses horrores, isso acaba com qualquer clima, não relaxa. Não faz sentido, não é pra mim. Eu nunca iria…”

Antes de qualquer coisa: é uma reflexão válida, e possui algum sentido.

De fato a primeira coisa que a gente imagina quando pensa em férias é “aproveitar o tempo livre“. É a maior das verdades. Pra muitos, significa poder fazer nada, ou usar aquelas poucas semanas disponíveis pra “condensar a felicidade” em passeios, compras, reuniões, almoços e visitas. “Pensar férias” pode significar um “momento margarina“: normalmente é essa a ideia vendida em qualquer material promocional turístico. Não existem pessoas sozinhas, tristes ou introspectivas nos anúncios de viagens. Aparentemente, as férias significam que após um ano de trabalho duro, finalmente chegamos lá – e quando você chega lá, acorda, passa o dia e dorme sorrindo. Pode parecer besteira, mas a gente morde essa isca, mesmo sem querer. É hora de desligar. E quem desliga, não quer pensar muito.

– Tristeza? Longe de mim. Choque? Já não me chega esse cotidiano terrível, essa coisa corrosiva…? Eu não vou usar meu pouco tempo livre tentando entender a dor e o sofrimento alheio. Isso é coisa de masoquista,

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Pois bem. Entendido o outro lado, vou expor o meu.

Já estivemos em alguns lugares cuja descrição é oposta ao pensamento acima: prisões, campos de concentração, instalações militares, ruínas de guerra, museus de tortura, etc. Antes de qualquer coisa: gostamos do assunto – eu, especialmente, tenho um fascínio inexplicável por esse tipo de coisa, e não é de hoje. Tem gente que enlouquece num free shop, outros que voltam encantados com hotéis e restaurantes espetaculares, tem quem se derreta por museus e pontos turísticos, e mais alguns que capotam com a beleza da natureza (também faço parte desse grupo de uns tempos pra cá). Mas minha principal motivação tem base no ser humano, sua essência e complexidade – eu não posso negar.

Talvez por isso encontrá-lo num contexto limítrofe seja algo tão incrível.

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Nossa vida cotidiana é na maioria das vezes estabelecida em uma rotina muito parecida, com mais ou menos poder aquisitivo, regrada por uma política aberta e com liberdade de expressão (esqueçam bandeiras e porta-vozes, mirem somente no contexto). Entrar em contato – mesmo que minimamente e de forma quase superficial – com outro tipo de realidade é uma experiência transformadora, no sentido mais escancarado da expressão. Mesmo com tanta imagem pronta, tanta referência histórica, tanto filme e tanto livro, sequer arranhamos a possibilidade de que certos acontecimentos tenham de fato ocorrido. Que tais coisas tenham existido. Enfim, que aquilo seja de verdade, e não cenário montado. Nada te prepara pra isso, e viajar para esses lugares exige sim estômago, alguma coragem e muito coração.

Somos pessoas que normalmente passam longe desses limites. Saber de histórias in loco, conhecer personagens (heróis, vilões ou simplesmente ilustres desconhecidos), pisar, tocar e ver certas coisas quebra a fantasia e nos transporta pra realidade mais distante e impensável possível. Pra quem imagina que essa jornada seja nociva, eu respondo que essa talvez seja uma das poucas – senão a única maneira de nos colocarmos no lugar de um desses personagens. E a vida nos ensina que essa passagem é a forma mais efetiva de mudarmos nossa maneira de agir e reagir a determinadas situações, coisas ou pessoas. Calçar os sapatos alheios pode nos trazer conforto ou incômodo, mas com certeza não nos deixa indiferente aos passos que se seguem.

Memorial "Sapatos às Margens do Danúbio" (Hungria)

Memorial “Sapatos às Margens do Danúbio” (Hungria)

Mas quem – estando de férias – quer se colocar no lugar de um prisioneiro? De um escravo? De um soldado? Um carrasco? Um nazista?

Pois é. Não é somente entrar em contato: é encarnar o personagem. Entender de dentro, sem intervalos comerciais, palavras cuidadosas ou tempo pra respirar. Sim, é uma experiência fortíssima, mas faz nossa mente abrir e nunca mais voltar ao tamanho de antes. Aquele sentimento distante vira perplexidade. Como era possível fazerem isso? Como esses caras aguentavam? Quem conseguia levar uma vida assim? Você vai embora com quilos e quilos de interrogações incômodas, mas necessárias pra nossa evolução pessoal. Deixamos por lá os preconceitos, o medo e o ranso. Às vezes ganhamos desgosto por aquilo que fomos capazes de fazer um dia, mas ele funciona como uma tatuagem: você leva consigo, e não repassa. Aquilo é seu, e pra sempre será.

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Enfim… aos que duvidam ou desgostam desse tipo de viagem, ou de sua proposta, eu deixo um pensamento: a vida não é feita somente de felicidade. Às vezes as grandes obras – que tanto admiramos e tomamos de exemplo – são deixadas por pessoas que sofreram com dores, castigos e penas impensáveis pra gente. Mais importante do que valorizar o resultado é entender o processo – e ele nem sempre acontece num caminho de flores. Portanto, entrar em contato com aquilo que fomos capazes de fazer um dia só nos faz crescer, mesmo de uma maneira que não pareça ideal num primeiro momento. Pro bem ou pro mal, o ser humano evolui todos os dias. Não tenha medo de evoluir alguns anos em poucas horas – porque no fim das contas, é isso o que de fato acontece.