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Estive lá, Turquia

Sobre tolerância e respeito

13 de outubro de 2015

Todos estamos acompanhando entristecidos e horrorizados (ao menos, assim espero) o que acontece na Síria de forma mais acentuada neste momento. E nesse verdadeiro êxodo, algumas reflexões precisam ser feitas por todos nós de uma forma BEM urgente. Deixamos aqui nossa breve contribuição.

Mas isso aqui não é um site sobre viagens?
– Amigo, apenas leia. E REFLITA.

Há uma verdadeira mobilização na Europa quanto ao papel do imigrante e seu lugar numa situação dessas: a recepção que os sírios vêm recebendo de países e governos vizinhos pode ter diversos significados, que vão da prometida paz ao preconceito descarado. O chute que aquela cinegrafista húngara deu no pai que carregava o filho nos ombros diz muito sobre que tipo de ser humano somos capazes de nos tornar, mas não pode refletir o caráter de um povo, muito menos estigmatizá-lo.

Nisso surge o Brasil em diversas reportagens, que exaltam “nossa capacidade de receber a todo tipo de imigrante de braços abertos”. Bem, sabemos que a coisa não é bem assim. Enquanto paulista, sei bem o quão torto olhamos para os coreanos, africanos, argelinos, turcos e árabes – povos que possuem comunidades gigantescas, e que por vezes dominam alguns bairros da cidade. Bem como o quanto o termo “japonês” na maioria das vezes tem caráter totalmente pejorativo, mesmo sendo essa a maior comunidade fora do país de origem que a cidade abriga. E nem preciso citar os termos utilizados pra designar os migrantes ou vizinhos que nos visitam ou por aqui se estabelecem, num bairrismo injustificável.

Traçando um paralelo que pode parecer descabido, tivemos uma experiência marcante na Turquia. Fazíamos uma conexão da Croácia para a Romênia, e paramos durante dez horas no Aeroporto Internacional de Istambul. Nossos planos iniciais consistiam em sair dali, ir almoçar na cidade e depois retornar ao aeroporto. Porém, assim que desembarcamos, uma sensação de miudeza nos dominou assim que vimos o tamanho do lugar. Resolvemos ficar por lá mesmo, e… conhecer o aeroporto. Sim, pode parecer absurdo, mas vimos nesse pânico uma oportunidade de diversão.

Vale a explicação geográfica: a Turquia funciona quase como um semáforo entre Europa, Ásia e África. Ou seja: todos os tipos de cultura desembarcavam e circulavam ali ao mesmo tempo, e isso era inacreditável: africanos em trajes típicos super coloridos e brilhantes, os europeus com toda a sua austeridade característica, e os orientais, que iam dos judeus aos islâmicos, mulheres trajando burca, xador ou hijabs (se eu errei algum desses nomes, desde já peço desculpas), coreanos, japoneses, árabes, além dos próprios turcos. Fora os esporádicos americanos, neozelandeses, australianos… e nós, brasileiros, oras! Era a coisa mais próxima à Copa do Mundo – ou a uma reunião da ONU – que poderíamos presenciar.

Turquia: o semáforo do mundo :)

Turquia: o semáforo do mundo 🙂

Sentamos em um terminal que estava bastante vazio, e ficamos observando maravilhados aquele fluxo impressionante. Quando de repente, uma horda de pessoas (homens em sua maioria) se aproximou e em segundos lotou todas as cadeiras restantes. Vestiam uma espécie de toalha branca, apoiada em um dos ombros e que ia até a cintura, onde dava a volta e cobria dali até pouco abaixo dos joelhos – e nenhuma peça a mais, além de chinelos. Sacaram seus celulares, ipads e afins, tiravam fotos uns dos outros enquanto conversavam e riam como qualquer grande grupo que viaja. Éramos os únicos ocidentais ali, e a cena era tão inacreditável que pensei em tirar uma foto… mas não consegui.

Então estamos aqui, usando fotos de quem conseguiu...

Então estamos aqui, usando fotos de quem conseguiu…

O pensamento que me invadiu foi que “aquilo estava certo, era ‘normal’, e eu é que estava fora do contexto“. É meio difícil explicar essas coisas, mas enquanto homem ocidental branco de mínima capacidade financeira, pela primeira vez eu me vi sendo minoria em alguma coisa na vida. E aquilo foi instantaneamente transformador. Não consegui tratar aquele grupo como um simples registro turístico, por mais descabido que tenha sido meu pensamento – e meu sentimento. É aquela hora em que você percebe o tamanho do mundo: o quanto nosso espaço aqui é ínfimo de tão pequeno, e o quanto não temos ideia das coisas que existem e acontecem neste mesmo planeta. Sim, tem gente que se veste de toalha, ou de tecidos brilhantes e chapéu; que só pode circular ao lado do marido de olhos de fora (às vezes, nem isso) – e que essas pessoas tomam sorvete de casquinha no Burger King; que a imagem daquelas pessoas que só aparecem em nossa TV associadas a terroristas são um povo, que se veste daquela forma, usa barba grande e por vezes pode ser sim mal-encarada (e nem por isso vão explodir seu avião). A gente vive em preconceito – às vezes (ou muitas vezes) sem notar.

Sorvete de casquinha: essa coisa que nenhuma cultura é capaz de censurar (seja ele turco ou do Burger King).

Sorvete de casquinha: essa coisa que nenhuma cultura é capaz de censurar (seja ele turco ou do Burger King).

O mundo é enorme, e as fronteiras são capazes de nos desumanizar. Nenhum povo é melhor que outro, nenhuma religião está “mais certa” que a outra (ou nenhuma), nenhum idioma prevalece, nenhum país deveria desmerecer outro – pois sequer temos ideia das dificuldades que as pessoas que não nasceram “por aqui” passam, ou aquilo que elas realmente podem. Somos todos habitantes dessa mesma bolinha azul, e deveríamos ser capazes de enxergar nessa pessoa diferente aí do lado um vizinho geográfico, e não um alienígena.

Então, pra fechar o pensamento desse breve texto: abrigar quem precisa, compreender suas diferenças (culturais, religiosas e afins), e acima de tudo entender essa unidade sob a qual pisamos e que dá nome ao nosso planeta é fundamental pra que a gente tenha um mundo mais bacana pra viver. Sírios, haitianos, angolanos, cubanos, americanos, orientais ou ocidentais – tem lugar pra todo mundo. E é nossa obrigação não esquecer nunca disso.

Bolívia, Causos

F****.

8 de outubro de 2015

Estávamos viajando pela Bolívia, e nosso próximo deslocamento seria de La Paz para Tupiza. Obviamente comprar uma passagem de ônibus em La Paz é uma experiência bem diferente do que fazê-lo no Terminal Tietê, por exemplo: não espere guichês organizados e garantias de que aquilo que você vê na foto é o que de fato você recebe. Mas é claro que não sabíamos de nada disso.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Então fomos até a rodoviária, comprar as tais passagens. Chegando ao guichê, um homem todo prestativo nos ofereceu um ônibus bacana, com ar condicionado e conforto. Tem banheiro? Não, mas o ônibus fará três ou quatro paradas em alguns hotéis pelo caminho. Nos parecia uma boa, e compramos nossos quatro bilhetes por preços bem cabíveis, felizes da vida.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Tudo pronto para a viagem – seriam aproximadamente 10 horas de ônibus, e sairíamos no meio da noite. Assim, com bancos reclinados, dormiríamos até a manhã seguinte, quando chegaríamos a Tupiza. Colocamos as malas no bagageiro do ônibus, e ao subir a escada percebemos o tamanho do buraco em que havíamos nos metido: os ônibus bolivianos que havíamos pegado até então já não eram lá essas coisas, e esse parecia “especialmente pior”, a começar pela pintura bizarra de uma espécie de Professor Girafales Seresteiro que embelezava seu exterior. Lá dentro, apenas bolivianos, que em nada lembravam turistas – pareciam locais indo para o interior, mais ou menos como se fosse uma viagem de São Paulo a Vitória feita no ônibus mais barato – e boliviano. As pessoas não queriam pagar para despachar suas bagagens, e em pouco tempo o interior do veículo virou uma zona: mantas, malas enormes, e em alguns quilômetros, uma parada providencial para que a maioria dos passageiros comprasse cada um seu frango, feito na rua e bastante cheiroso – é bom dizer – mas imaginem um ônibus cheio de gente comendo frango.

As poltronas eram esquisitas, as janelas não fechavam direito, e obviamente não existia nenhum ar condicionado naquele pardieiro. A noite avançava, e a vontade de ir ao banheiro surgiu na minha mãe. Esperávamos a chegada ao primeiro hotel, quando o ônibus pára no meio da estrada. Um breu. Ela, apertada, desce pra ver onde rolaria o tal xixi. A Dé acompanhou a sogra, num gesto de grandeza e inconsequência. Me contou depois que os “banheiros” eram num descampado, cujos azulejos possuíam cor e tons extremamente suspeitos. As cholas que desceram do ônibus para o mesmo fim simplesmente se agachavam e levantavam um pouco as saias. Ao término, ajeitavam a roupa e voltavam pro ônibus. Não vi nada disso. Não temos fotos. Sou extremamente grato por isso, pois imagino que a experiência tenha sido algo desse tipo:

Veio a madrugada. Eu estava numa janela, minha mãe na janela oposta. Nas poltronas do corredor, a Dé e a Mel. Entrava um vento gelado pelas frestas das janelas, que não nos deixava dormir de jeito nenhum. Disseram-me que havia gente deitada no corredor, dormindo ali mesmo, e eu não duvido nem um pouco. A noite foi longa e terrível, mas assim que amanhecesse chegaríamos ao nosso destino e todo esse pesadelo acabaria. O sol surgiu, e entramos numa área de deserto. Sentia que estava acabando.

Sentia, quando o ônibus quebrou.

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

E não quebrou pouco. Um problema no eixo, que nos estacionou no meio do nada. Esperamos do lado de fora, enquanto o motorista tentava consertar aquela desgraça. Nosso tour para Uyuni sairia de Tupiza às 14h, e os nervos estavam mais quentes que aquela areia toda. Algum/muito tempo depois, pediram para que subíssemos. O ônibus partiu, com barulho de coisa quebrando, e numa velocidade inferior a qualquer bicicleta que por um acaso se perdesse por lá.

Assim seguimos por algum tempo, até chegarmos num vilarejo completamente inexplicável: Santiago de Cotagaita. Consistia numa rua de terra, com duas ou três esquinas, uma agência da Western Union e alguns “restaurantes”, com aspas mesmo. Descemos, e o motorista levou o ônibus mais à frente para o conserto. Aparentemente um acaso comum, pois todos os outros passageiros pareciam perfeitamente conformados com a situação, e de lá resolveram almoçar naquele fim de mundo. Eu queria explodir. Não lembro quem pediu comida – se as três ou não. Sei que não comi nada, e estava espumando de raiva daquilo tudo: da promessa do cara que me vendeu, e do quanto eu havia sido otário em acreditar. Nada do ônibus ficar pronto. Era notório que havíamos perdido a saída do nosso tour, e isso só aumentava nossa dor.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à direita.

Cotagaita à direita.

Um molequinho brincava feliz no meio daquela poeira toda. A sensação era de estarmos esquecidos no meio do nada. Não tínhamos dinheiro em espécie, e não tínhamos como conseguir uma grana naquele cafundó. Era desesperador. As horas passavam, olhávamos pro fim da rua, e nada do ônibus aparecer. Estávamos pagando nossos pecados, com juros e suor. Meu humor já tinha acabado há tempos, e eu estava absolutamente intratável.

Eu, procurando meu humor.

Eu, procurando meu humor.

Alguém feliz.

Alguém feliz.

Não sei quanto tempo levou, mas ver o ônibus voltando foi um alento.

Entramos, e ele seguiu entre primeira e segunda marchas. Uma nova quebra era iminente, mas tentávamos acreditar que apesar de tudo aquilo, conseguiríamos chegar. Na única TV ali dentro passava um VHS, com uma festa local tocando cumbia. Tentávamos descontrair, mas era difícil. Devagar e sempre, o ônibus seguiu adiante, e chegamos a Tupiza por volta das 16h (sendo que saímos de La Paz às 20h do dia anterior… sim: VINTE HORAS DE VIAGEM PELO INFERNO). Dali em diante as coisas dariam certo – mesmo dando errado, como deram.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

Já se vão 4 anos dessa via crucis, e hoje a gente lembra dessa história e dá risada. Portanto, valorize seu ar condicionado, seu banheiro limpinho, sua janela vedada, seu carro motor mil e seu sofá da sala: nunca se sabe quando seu trajeto pode te jogar em Santiago de Cotagaita.

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (3/6)

5 de outubro de 2015

Seria uma manhã difícil. Possivelmente, a mais esperada até então, uma vez que subiríamos o Roraima – e isso já era motivo mais que suficiente para que acordássemos dispostos, mesmo com as dores que já nos incomodavam – a mim principalmente, pois o joelho de fato não estava nada bem. Imaginando o que viria pela frente, era hora de respirar fundo.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Tomamos nosso café, pegamos nosso almoço (um sanduichinho de presunto e queijo embrulhado num saquinho plástico – guardem essa informação), aprontamos as coisas e saímos na frente de todo mundo (pois já estávamos cientes que seríamos os últimos a chegar no dia seguinte – então por que não começar na frente pra diminuir esse gap?). Descemos uma pequena trilha, cruzamos aquela cachoeirinha onde deveríamos ter tomado banho no dia anterior, e seguimos até o começo da subida.

É um trecho bastante acidentado, com obstáculos semelhantes a degraus – mas “não tão dóceis”, pois os pés encaixavam durante cada pequena subida, e a mudança entre os níveis não era tão suave. A trilha é evidente, mas longe de ser aquela coisa Começamos bem, mas não demorou para que o corpo começasse a dar sinais de cansaço. Durante essa primeira parte da subida, algumas pessoas e pequenos grupos desciam pela mesma trilha. Praticamente todos com quem cruzamos ofereciam palavras de incentivo, já sabendo o tamanho do desafio com que estávamos lidando. Algumas pausas para água – que encontrávamos com certa frequência pelo caminho, e isso facilitava um pouco as coisas. Nisso, o grupo todo havia passado pela gente – inclusive o guia, que esperava a passagem de todos em determinados lugares durante a subida.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

Água: um carinho na alma.

Água: um carinho na alma.

É difícil precisar o tempo de subida, mas enfim chegamos ao paredão do Monte Roraima. E foi uma alegria absurda, acreditem.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Dali em diante, o caminho consistia numa trilha de subidas, descidas e alguns trechos retos mais longos, o que serviu pra gente descansar um pouco as pernas e viver um pouco mais a coisa. A impressão que se tem andando por ali é de estar num terreno de mata fechada, pois do lado oposto ao paredão existe uma vegetação fechada que impede a visão do penhasco. Porém, em alguns trechos essa mesma vegetação abre, e pessoas até então com medo de altura (como eu) têm duas opções: perder o medo ou voltar. Eu optei pela primeira, e posso dizer que nesse dia perdi meu medo definitivamente.

À direita, pedra. À esquerda, nada...

À direita, pedra. À esquerda, nada…

...além de uma vista espetacular.

…além de uma vista espetacular.

Nosso ritmo continuava mais lento que o dos demais, e em nosso último encontro com o guia ele já nos esperava há algum tempo, com cara de poucos amigos. Após dar a volta numa enorme pedra (e me livrar dos últimos resquícios de medo que ainda insistiam em me atormentar), começamos o trecho final da subida – o chamado “Paso De Las Lágrimas“, batizado assim por dois motivos: fica debaixo de um lugar que, durante as chuvas, vira uma pequena queda d’água (a 700 metros do chão, é bom relembrar); e por motivos óbvios – você já chega lá em cima querendo chorar, tamanha a dificuldade de todo o caminho, composto basicamente de enormes pedras amontoadas.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra frente, lágrimas.

Olhando pra frente, lágrimas.

Minhas dores eram indisfarçáveis, e o guia notou que o desafio – que já era grande pros seres humanos normais – pra mim parecia ainda maior. Ele nos aguardava no início da subida, e de lá ele me deu o veredicto:

– Preciso ser sincero com você: vendo as dores que você está sentindo, e a dificuldade em subir esse trecho de hoje, eu aconselho que você volte antes. A gente sobre, você passa a noite lá em cima, e amanhã um dos carregadores volta com você pra base de hoje. O caminho lá em cima é todo de pedra, e com esse joelho assim é arriscado… fora que pra descer você vai sofrer demais. É o meu conselho, mas vocês decidem.

Ele saiu de perto. EU EMPUTECI.

Óbvio que ele estava certo, e com toda a razão do mundo. Mas eu não tinha penado tudo aquilo pra chegar lá em cima E DESCER ANTES. Já havia pipocado uma vez em outra viagem, e me recusei a seguir conselho de quem quer que fosse. Subi o Paso xingando o guia, a mãe do guia, a Jamaica e quem mais resolvesse se meter no meu caminho. E pouco depois, estávamos lá em cima – onde ele nos esperava, para dali em diante seguirmos até o “hotel” – nome dado ao lugar em que passaríamos as próximas duas noites. Havíamos subido o Monte Roraima, e enquanto a Dé estava feliz, eu soltava fumaça.

Foi então que… aconteceu.

O guia começou a caminhar em direção ao hotel, e nós o seguíamos – no começo, no mesmo ritmo, mas meu joelho latejava e eu fui ficando pra trás. A Dé, entre os dois, foi ficando comigo e se afastando do cara, que sumiu de vista. Começa a chover, e chover muito. A gente vê no horizonte o tal hotel – que é uma formação bem evidente, mas o caminho…

…é uma coisa única. A superfície do Monte Roraima não é comparável a nada que a gente conheça, e quando olhamos pra baixo não dá pra diferenciar uma área “gramada” de uma área alagada. Arriscamos atravessar, tentando chegar o quanto antes ao hotel. Já estávamos encharcados (não dava tempo de puxar jaqueta ou cobrir mochila, o tempo virou rápido demais), e num dos buracos indecifráveis a Dé literalmente AFUNDOU até a cintura de lama. Eu travei. Ela saiu, e nisso um dos carregadores chegou pra nos guiar até o hotel.

Ricky - nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Ricky – nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Nosso "hotel", ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Nosso “hotel”, ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Éramos os últimos. Chegamos sob uma salva de palmas que tinha como único objetivo nos animar, mas estávamos totalmente derrotados – talvez como nunca em nossas vidas. Aquilo era um pesadelo: botas alagadas, roupas encharcadas e cheias de lama, fazia um frio desgraçado lá em cima. Não sabíamos como nem onde trocar de roupa. Demos um jeito, e pouco depois eu saía da barraca pra buscar o jantar da Dé – mais um macarrão, e um copo grande de leite quente – porque ela tremia de frio já dentro do saco de dormir, agasalhada e tão derrotada quanto eu. Sabíamos que as botas não secariam até o dia seguinte, e não imaginávamos como seria possível passear durante um dia inteiro lá em cima sem elas. Seria o dia mais importante da viagem, e não bastando sermos os mais despreparados, éramos também os mais arrebentados e desequipados de todo o grupo. Precisávamos de um milagre para o quarto dia, e outro para os dois seguintes.

Dois milagres em três dias: não era pouco. Dormimos totalmente sem esperança.

Brasil, Faniquito

Um pouco de mamata

28 de setembro de 2015

Voltamos.

De uma experiência nova (pra gente), que se diga. As férias desse ano nos exigiram um planejamento diferente, com gastos mínimos – afinal, sabemos todos que não tá fácil pra ninguém – e alguns incêndios caseiros complicaram ainda mais a coisa. Um cenário suficientemente feio pra fazer explodir qualquer cabeça.

Mas viajar é preciso.

Tem hora que a gente precisa desligar o Netflix e olhar pro céu.

Tem hora que a gente precisa desligar o Netflix e olhar pro céu.

E acabamos fazendo aquele tipo de viagem que nunca ousamos: pegamos um resort a preços módicos e tudo incluso, pra sossegar a cabeça e recarregar as baterias. Uma ideia que passa longe de nos empolgar em situações normais, mas que das poucas possibilidades que tínhamos mostrou-se a mais adequada quando falamos de custo/benefício: um lugar bacana, praia (pela primeira vez em oito anos de namoro, por incrível que pareça), comida e bebida já pagos e nenhum outro tipo de gasto – fora as passagens – que também encontramos quando da pesquisa. Uma semana disso, e uma esticada pro Rio para reencontrar amigas, passear um pouco, e se desse, pegar mais uma praia – afinal, se é pra tostar, que seja direito.

Fomos. E foi tudo muito diferente do que normalmente é. Começando por Ilhéus, que mal conhecemos – afinal, ficamos no Cana Brava* (http://www.canabravaresort.com.br/) durante os sete dias e mal conhecemos a cidade – era esse nosso planejamento, e batemos pé com ele. Chegamos durante a hora do almoço, e à tarde – já devidamente comidos e alojados – caímos na piscina. Alguns minutos depois a Dé vira pra mim e diz:

– É estranho né?
– O que é estranho?
– Não ter pra onde ir…

Não tínhamos mesmo pra onde ir. Mas e daí?

Não tínhamos mesmo pra onde ir. Mas e daí?

E esse foi o primeiro e único momento de estranhamento que tivemos. De fato, não ter que colocar mochila nas costas, mudar de albergue/hotel, conhecer cidade, procurar onde comer ou onde ir era algo até então inédito pra gente. Mas quando colocamos na cabeça que a ideia era descansar, fizemos por onde. E da mesma forma que sempre recomendamos as viagens estradeiras e nômades, podemos afirmar sem dor na consciência que às vezes esquecer de tudo é igualmente necessário, e um pouco de mamata não faz mal a ninguém.

Desencanar: trabalhamos.

Desencanar: trabalhamos.

E podíamos desencanar pra dentro do hotel, pro lado de cá...

E podíamos desencanar pra dentro do hotel, pro lado de cá…

...e pro lado de lá.

…e pro lado de lá.

Isso não significa abandonar um perfil pra se encaixar em outro, e sim adicionar opções e possibilidades na hora de planejar uma viagem. Enquanto estávamos por lá, ficou claro pra gente que não conseguiríamos fazer duas viagens como essa na sequência, porque nos cansa. Nossa pegada é outra, e às vezes uma pausa como essa significa poder dar ao próximo destino dois anos de planejamento ao invés de um (obviamente se você, assim como a gente e a grande maioria dos seres humanos) tiver como período de férias um mês em doze. Serviu como descanso, e somos gratos pela escolha – mas certamente ela não pontua nossos sonhos de consumo.

Nosso texto de hoje serve pra relatar essa experiência diferente – não precisamos ficar publicando fotos de dentro do hotel, das piscinas ou essas coisas que cada um desses lugares costuma fazer muito bem em seus meios de comunicação. Mas sim pra relatar que nosso preconceito com esse tipo de viagem foi por água, assim como todo preconceito deve ir. Então é isso: às segundas e quintas estamos de volta ao batente.

E ainda bronzeados 😉

P.S.: O Rio de Janeiro SEMPRE merece capítulos à parte, e assim ele será contado mais pra frente. Por hoje, sejamos econômicos – e um pouquinho de suspense não faz mal a ninguém…!


*Nossos textos não são patrocinados. A gente indica aquilo que a gente gosta/aprova, porque isso também ajuda na viagem alheia. Simples assim.

Faniquito

Carregando [7%]

6 de setembro de 2015

Viajar mostra pra gente a importância de aproveitar bem o tempo. Isso não significa viver neuroticamente e fazer o maior número de coisas possíveis nesse período, mas sim aproveitar cada momento gastando energia nas coisas certas, ou recarregando as baterias. Não por acaso a gente deseja tanto a chegada das férias. Final de ciclo, começo de outro, oportunidade pra fazer do tempo um aliado, e não um inimigo.

Por isso mesmo, a gente – eu e a Dé – vamos utilizar nossos próximos dias pra isso, porque nossas férias chegaram, e a bateria tá pedindo recarga. Na nossa programação estão novos lugares, velhos lugares, um tempinho de sofá, amigos próximos, amigos distantes e o que mais esses dias nos trouxerem, mesmo porque às vezes o improviso é a melhor opção.

O Faniquito vai junto com a gente – oras, é um projeto de casal, e se o casal sai de férias, o site também ganha uma folga. Prometemos retornar com novas histórias, de fôlego restabelecido, e quem sabe, com outros novos colaboradores. Sim: beirando os primeiros dez meses de vida, ainda temos muito pela frente.

Estamos de volta jajá! Inté!

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (2/6)

31 de agosto de 2015

Acordamos pouco antes do sol nascer. Passamos a noite no mais absoluto silêncio, ainda nos acostumando ao aperto dos sacos de dormir, mas o cansaço do primeiro dia de caminhada fez com que as dificuldades de adaptação não fossem páreo para nossa necessidade de descanso. A manhã ainda escura exibia em nosso horizonte os tepuis ainda sob névoa. Esticamos o corpo, e começamos a nos vestir para seguir caminho logo após o café da manhã.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

A equipe de guia e ajudantes era responsável por todas as refeições, além de levantar acampamento, literalmente. Todos já estavam acordados, e nosso café não tardou a ser servido. Novamente o suco colorido, leite, chá, frutas, manteiga, fritada (que eu passei adiante), e uma espécie de pãozinho frito estavam na mesa assim que o sol apareceu. Aos poucos todo mundo foi se aproximando, e a mesa que estava vazia ficou cheia. De lá mesmo, recebemos algumas instruções de como poderia ser nosso dia, e alguns cuidados que devíamos tomar pelo caminho.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

O planejamento do dia consistia em chegarmos à segunda base perto da hora do almoço, justamente para descansarmos durante um período maior antes da subida do Monte Roraima. Atravessaríamos dois rios durante a trilha, antes de um trecho mais extenso de caminhada. Bem alimentados e de mochila nas costas, começamos nosso segundo dia.

Após um breve período de caminhada, fizemos nossa primeira pausa perto de uma igrejinha no caminho, onde nosso guia contou um pouco da história da região – e da própria igrejinha. Pouco adiante, descemos um morrinho e encontramos nosso primeiro rio.

Um longo caminho pela frente...

Um longo caminho pela frente…

...e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

…e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

Pausa.


Nessa descida (uma descida besta, que se diga), meu joelho estalou. E dali em diante eu teria meu próprio drama pessoal para cuidar. Como o corpo estava quente, não senti nada naquele instante – e seriam os últimos momentos em que eu estaria “plenamente saudável” – entre aspas mesmo.

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).


Voltemos.

Chegamos ao rio. E lá recebemos algumas instruções bastante curiosas, que eu vou listar agora mesmo:

  • Para atravessar, apenas meias nos pés: sim, nada de calçados, chinelos ou mesmo pés descalços. Pisaríamos em pedras, e para isso nos foi pedido naquela reunião ainda no albergue que levássemos um par de meias para esse fim.
  • Calçados amarrados na mala ou pendurados no pescoço: nada de segurar botas ou tênis com as mãos, pois em caso de queda você não perde seus calçados (o que seria um verdadeiro suicídio para a trilha, ou quase isso) e suas mãos estão livres para apoiar seu corpo.
  • Um por vez, com calma e sem pressa: sim, nada de bancar o Indiana Jones. A ideia é todo mundo passar numa boa, e com calma. O Ricky estava no meio do rio, e nos auxiliava com a travessia.
Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Hora de seguir as instruções, se preparar...

Hora de seguir as instruções, se preparar…

...e encarar a travessia. De meias.

…e encarar a travessia. De meias.

E assim procedemos. Depois de atravessar, as meias iam pra um saquinho (de onde seriam tiradas logo mais para a segunda travessia). Secamos os pés, colocamos outro par de meias e seguimos. Mais algum tempo de caminhada, o segundo rio, e os mesmos passos. Com todos vivos e novamente calçados, era hora de vencer os quilômetros restantes.

O dia estava bonito e o sol dava as caras. Como bom sol da manhã, ele mais agrada que machuca. O caminho do dia era bem mais acidentado, com uma subida mais acentuada em alguns trechos. Com pequenas pausas para água ou uma barrinha de cereal providenciais, fomos aos poucos nos afastando do grupo, e essa seria a tônica devido ao nosso quase nenhum preparo físico para a jornada: estávamos fadados a sermos sempre os últimos a chegar a nossos destinos, e mesmo sendo os que levavam a bagagem menos volumosa, isso ficava cada vez mais claro. O esforço do dia anterior cobrava sua conta, e somava-se às subidas cada vez mais longas. Parávamos, prosseguíamos, parávamos de novo e assim por diante.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Mas as subidas eram grandes, e....

Mas as subidas eram grandes, e….

...não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

…não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

E mais treze quilômetros vencidos!

E mais treze quilômetros vencidos!

Mas as coisas fluiram, e chegamos ao final da nossa jornada – cansados, como não poderia deixar de ser, mas inteiros (com exceção do meu joelho, que ainda não doía tanto). Estávamos sedentos por um banho, pois o esforço havia sido bem maior do que o do dia anterior. Porém, o carregador que estava com nossa bagagem ainda não havia chegado, e não tínhamos com o quê nos vestir se entrássemos na pequena cachoeirinha, situada pouco abaixo da área de camping. Esperamos algum tempo e nada. O corpo esfriou e éramos os únicos a não conseguir tomar o tal banho. Eis que quase na hora do almoço, o rapaz chega – um dos carregadores havia passado mal, e os outros resolveram seguir com ele dali em diante. Com nossas roupas e toalhas em mãos, resolvemos tentar a sorte e ver “o que conseguiríamos lavar”.

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

O local da pequena cachoeira era bem escorregadio, com lama e o escambau. Ali formava-se uma pequena piscina, onde todo mundo se lavava, e podíamos encher nossas garrafas na queda d’água, que ficava escondida entre as pedras. Mas assim que colocamos os pés na piscina, ficou claro que não teríamos direito a banho: a água CONGELAVA PENSAMENTO DE TÃO GELADA. Ainda quentes, possivelmente nos arriscaríamos por puro ímpeto, mas – acreditem – não dava. Tomamos o tradicional banho de gato, e nos demos por satisfeitos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Guardem essa informação: TOMAMOS BANHO, mesmo que precariamente.

Voltamos ao acampamento. Almoçamos tranquilamente, e teríamos toda a tarde para descansar. Conversamos um pouco com o pessoal, tentamos descansar em nossa barraca (mas o canadense e o japonês cismaram de “jogar baseball” justamente onde estávamos, e permanecer na barraca tornou-se uma tarefa impossível), e no fim das contas ficamos mesmo na área das refeições – uma espécie de tenda, junto com outras pessoas de nosso grupo, e nosso guia. De lá, podíamos enxergar claramente o paredão do Roraima, que agora estava muito próximo, e ficamos tentando advinhar como subiríamos aquilo. Onde estava a trilha?

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

O Ricky nos explicou que um cara havia conseguido subir de muletas. Eu olhei de novo praquela trilha verde, que me parecia tão impossível, e fiquei na dúvida se aquele papo era realmente verdade, ou se não era conversa pra dar coragem aos que estavam temerosos. Meu joelho já havia esfriado, e doía consideravelmente. Improvisamos uma semi-imobilização, com Salompas e uma canga funcionando como faixa por dentro da calça. A esperança é que a tarde/noite de descanso me preparassem para o desafio do dia seguinte. E por melhorem que fossem as histórias de superação, ficar diante do Roraima e não se intimidar me parecia totalmente impossível.

Chegou a noite, e assim que a luz natural caiu, nos serviram uma espécie de guisado de frango – muito bom, por sinal. Tivemos a visita de uma cobra pouco antes do jantar, que mesmo pequena acabou assustando os menos destemidos. Novamente, destacaram-se as lanternas de cabeça.

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria...

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria…

...uma cobra querendo jantar...

…uma cobra querendo jantar…

...e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

…e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

Jantamos, e pouco depois nos recolhemos. Os pés da Dé doíam, e meu joelho idem. Nos cuidávamos dentro da barraca, na base da massagem e farmacinha básica. Não demoramos a dormir, pois sabíamos que no dia seguinte teríamos possivelmente o maior desafio dessa jornada.

Ao menos, era o que pensávamos.