Faniquito

Quando machuca

30 de abril de 2015

O texto de hoje é um pouco diferente.

Ele levanta uma questão que vem tomando minha atenção há algum tempo, mais especificamente, desde que soubemos que nossa viagem a Auschwitz “não foi algo tão bem recebido” por algumas pessoas – umas mais próximas, outras nem tanto. Entenda-se pela expressão entre aspas como uma forma simplista de tentar traduzir por vezes inconformismo, por outras perplexidade o fato de termos visitado um local cuja história é notoriamente triste, e de um contexto cujas explicações são desnecessárias.

“Não dá pra entender… ir pra um lugar desses, nas férias? Uma época pra se divertir, não pra… isso. Quem sai de casa pra ficar deprimido? Ver esses horrores, isso acaba com qualquer clima, não relaxa. Não faz sentido, não é pra mim. Eu nunca iria…”

Antes de qualquer coisa: é uma reflexão válida, e possui algum sentido.

De fato a primeira coisa que a gente imagina quando pensa em férias é “aproveitar o tempo livre“. É a maior das verdades. Pra muitos, significa poder fazer nada, ou usar aquelas poucas semanas disponíveis pra “condensar a felicidade” em passeios, compras, reuniões, almoços e visitas. “Pensar férias” pode significar um “momento margarina“: normalmente é essa a ideia vendida em qualquer material promocional turístico. Não existem pessoas sozinhas, tristes ou introspectivas nos anúncios de viagens. Aparentemente, as férias significam que após um ano de trabalho duro, finalmente chegamos lá – e quando você chega lá, acorda, passa o dia e dorme sorrindo. Pode parecer besteira, mas a gente morde essa isca, mesmo sem querer. É hora de desligar. E quem desliga, não quer pensar muito.

– Tristeza? Longe de mim. Choque? Já não me chega esse cotidiano terrível, essa coisa corrosiva…? Eu não vou usar meu pouco tempo livre tentando entender a dor e o sofrimento alheio. Isso é coisa de masoquista,

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Pois bem. Entendido o outro lado, vou expor o meu.

Já estivemos em alguns lugares cuja descrição é oposta ao pensamento acima: prisões, campos de concentração, instalações militares, ruínas de guerra, museus de tortura, etc. Antes de qualquer coisa: gostamos do assunto – eu, especialmente, tenho um fascínio inexplicável por esse tipo de coisa, e não é de hoje. Tem gente que enlouquece num free shop, outros que voltam encantados com hotéis e restaurantes espetaculares, tem quem se derreta por museus e pontos turísticos, e mais alguns que capotam com a beleza da natureza (também faço parte desse grupo de uns tempos pra cá). Mas minha principal motivação tem base no ser humano, sua essência e complexidade – eu não posso negar.

Talvez por isso encontrá-lo num contexto limítrofe seja algo tão incrível.

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Nossa vida cotidiana é na maioria das vezes estabelecida em uma rotina muito parecida, com mais ou menos poder aquisitivo, regrada por uma política aberta e com liberdade de expressão (esqueçam bandeiras e porta-vozes, mirem somente no contexto). Entrar em contato – mesmo que minimamente e de forma quase superficial – com outro tipo de realidade é uma experiência transformadora, no sentido mais escancarado da expressão. Mesmo com tanta imagem pronta, tanta referência histórica, tanto filme e tanto livro, sequer arranhamos a possibilidade de que certos acontecimentos tenham de fato ocorrido. Que tais coisas tenham existido. Enfim, que aquilo seja de verdade, e não cenário montado. Nada te prepara pra isso, e viajar para esses lugares exige sim estômago, alguma coragem e muito coração.

Somos pessoas que normalmente passam longe desses limites. Saber de histórias in loco, conhecer personagens (heróis, vilões ou simplesmente ilustres desconhecidos), pisar, tocar e ver certas coisas quebra a fantasia e nos transporta pra realidade mais distante e impensável possível. Pra quem imagina que essa jornada seja nociva, eu respondo que essa talvez seja uma das poucas – senão a única maneira de nos colocarmos no lugar de um desses personagens. E a vida nos ensina que essa passagem é a forma mais efetiva de mudarmos nossa maneira de agir e reagir a determinadas situações, coisas ou pessoas. Calçar os sapatos alheios pode nos trazer conforto ou incômodo, mas com certeza não nos deixa indiferente aos passos que se seguem.

Memorial "Sapatos às Margens do Danúbio" (Hungria)

Memorial “Sapatos às Margens do Danúbio” (Hungria)

Mas quem – estando de férias – quer se colocar no lugar de um prisioneiro? De um escravo? De um soldado? Um carrasco? Um nazista?

Pois é. Não é somente entrar em contato: é encarnar o personagem. Entender de dentro, sem intervalos comerciais, palavras cuidadosas ou tempo pra respirar. Sim, é uma experiência fortíssima, mas faz nossa mente abrir e nunca mais voltar ao tamanho de antes. Aquele sentimento distante vira perplexidade. Como era possível fazerem isso? Como esses caras aguentavam? Quem conseguia levar uma vida assim? Você vai embora com quilos e quilos de interrogações incômodas, mas necessárias pra nossa evolução pessoal. Deixamos por lá os preconceitos, o medo e o ranso. Às vezes ganhamos desgosto por aquilo que fomos capazes de fazer um dia, mas ele funciona como uma tatuagem: você leva consigo, e não repassa. Aquilo é seu, e pra sempre será.

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Enfim… aos que duvidam ou desgostam desse tipo de viagem, ou de sua proposta, eu deixo um pensamento: a vida não é feita somente de felicidade. Às vezes as grandes obras – que tanto admiramos e tomamos de exemplo – são deixadas por pessoas que sofreram com dores, castigos e penas impensáveis pra gente. Mais importante do que valorizar o resultado é entender o processo – e ele nem sempre acontece num caminho de flores. Portanto, entrar em contato com aquilo que fomos capazes de fazer um dia só nos faz crescer, mesmo de uma maneira que não pareça ideal num primeiro momento. Pro bem ou pro mal, o ser humano evolui todos os dias. Não tenha medo de evoluir alguns anos em poucas horas – porque no fim das contas, é isso o que de fato acontece.

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Um comentário

  • Responder Adriana Berti 4 de maio de 2015 às 17:17

    Texto incrível! Eu também sou fascinada por essas coisas que eu não sou capaz de compreender em relação ao ser humano. E concordo contigo quando fala de evolução em poucas horas, pois é indescritível, mesmo que por minutos, tente vivenciar este sofrimento. E ainda saber que por muitos anos essas pessoas suportaram tamanho sofrimento. Realmente uma lição de até onde o ser humano pode ir….para o bem e para o mal…

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