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América do Sul

Brasil, Faniquito, Tailândia

Morre lentamente quem não viaja

3 de setembro de 2015

Por Beta Clapp


Eu nunca fui uma criança muito criança. Eu era daquelas crianças que preferem ler a brincar. Eu tratei de começar a ler muito cedo, provavelmente porque não queria depender da minha mãe toda vez que queria ouvir uma história de que eu gostava ou que queria conhecer alguma nova. E foi, assim, que comecei a viajar. Eu percebi que para viajar a gente não precisava sair do lugar, mas logo entendi que era muito melhor quando a gente saía. Qualquer passeio de carro acabava sendo uma viagem – eu geralmente carregava um livro (hábito que se mantém até hoje, pois nunca saio de casa sem um livro na bolsa para ler no ônibus) que servia como uma música de fundo para o trajeto. Junto com isso, comecei a inventar as minhas próprias histórias. Eu me lembro de uma vez que fui ao Museu Imperial em Petrópolis e me apaixonei por um menino que trabalhava lá. Não sei dizer quantos anos eu tinha, não chegava aos 13, mas eu inventei uma história incrível, tipo Romeu e Julieta, fui muito longe. No começo eu contava tudo para mim, passava aquele dia inteiro do passeio vivendo um personagem, um conto que não divulgava nunca, mas com o tempo aprendi que era uma boa ideia carregar um caderno comigo e ir anotando essas coisas que passavam pela minha cabeça. Eu comecei a unir então a possibilidade de estar em outros lugares, com a experiência de viver novas e outras histórias que não a minha, e registrá-las para além da minha memória. Mais tarde eu descobri que tinha um outro jeito lindo de fazer isso, mas aí era a minha história mesmo – a fotografia me permitiu roubar segundos no tempo e marcar para sempre o meu ângulo daquela passagem.

A vontade de sair por aí sempre me acompanhou. Eu tinha uns 11 ou 12 anos quando pensei em fazer intercâmbio pela primeira vez. Mas a grana era curta e isso nunca aconteceu. Apesar de ter viajado para alguns lugares, eu nunca tinha matado uma vontade enorme que era andar de avião. Aos 21 anos eu entrei em um aeroporto pela primeira vez. Eu devo ter entrado antes disso, mas sinceramente não me lembro. Dessa vez eu estava fazendo entrevista para um emprego em uma empresa terceirizada que prestava serviço de check-in, embarque, etc., para três empresas internacionais. Eu fui contratada e no primeiro dia contei para o pessoal da equipe que nunca tinha entrado em um avião. Fiz o check-in do meu primeiro vôo e de repente passaram um rádio me chamando para o portão de embarque. Quando cheguei lá, os meninos me chamaram e disseram: Vem que você hoje vai entrar num avião. Foi uma das coisas mais bacanas e gratuitas que já fizeram por mim. Talvez eles nem saibam o quanto aquilo foi importante e me fez feliz naquele momento.

Mas andar mesmo de avião só aconteceu quando eu já tinha 27 anos. Foi um vôo Rio-Campinas saindo do Santos Dumont. Era um domingo, estava um dia lindo e o meu lugar era na janela. Primeiro preciso dizer que era uma viagem a trabalho e eu tinha perdido o meu vôo. Tive que transferir, ia dar uma mega zica, porque eu ia ficar um tempão esperando em Campinas até pegar o outro avião. Nada disso importa. O que importa mesmo é que eu estava apavorada, o avião parecia um ônibus com asas de tão pequeno e apertado e eu ia voar. O cara do meu lado abriu uma revista e nem se abalou quando aquele teco-teco disparou na pista. Não sei se vocês já decolaram ou pousaram no Santos Dumont, mas garanto que parece que o avião vai dar um mergulho no oceano. Ou dar de cara com uma montanha. Eu fui suando do Rio até Campinas, com as mãos geladas e com vontade de socar o cara do meu lado que não movia um músculo enquanto eu jurava que ia ter piripaque.

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Essa foi a minha primeira viagem de avião. A minha primeira viagem sozinha. Eu cheguei no aeroporto, aluguei um carro e dirigi umas boas três horas até chegar onde precisava. Essa noite eu pedi várias cervejas no quarto do hotel, fiquei bêbada, pedi uma pizza e depois dormi. Me senti sozinha e estranha. O dia seguinte já foi diferente: eu ia sair de carro dali, resolver meia dúzia de coisas e depois ia para outra cidade. Foi quando eu me lembrei de uma coisa que eu amo: dirigir em estrada. Eu estava em outro estado, indo para uma cidade que não conhecia, sozinha, de carro, ouvindo música e não conseguia disfarçar o sorriso no rosto. Eu estava super feliz. Aquele emprego que eu não curtia tinha me trazido uma coisa incrível: eu estava viajando.

Vieram outras depois. E outras. E mais outras. E eu fui ficando cada vez mais esperta nessas viagens. Eu escolhia hotéis, levava minhas câmeras, parava nas estradas para fotografar o que eu queria e inventava minhas histórias. Eu chegava um dia antes para poder dar um rolé pela cidade. Pra ver o movimento. Eu andava pelas ruas prestando atenção e pensando em como seria morar em cada canto daqueles. Eu aprendi a jantar sozinha em um restaurante que me interessasse em vez de pedir uma pizza solitária no quarto do hotel. Eu dava um jeito de resolver tudo que precisava para sobrar um tempinho para mim. E foi assim que eu fui nas Cataratas do Iguaçu. Dirigi mais de 1000 km em dois dias (e isso não é exagero) para conseguir ir no Parque na manhã antes de voltar. Dessa vez eu conheci um garoto também, mas eu não inventei a história – puxei assunto, começamos a conversar, tiramos várias fotos um do outro (o que às vezes falta quando a gente viaja sozinho) e no final quando me despedi dei um beijo na boca dele 🙂 . Acho que ele não entendeu muito bem, mas tranquilo. Eu entendi.

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Foi no final desse mesmo ano que eu fiz a minha primeira viagem internacional. Uma amiga ia tirar férias e me convenceu a ir com ela. Eu ia estrear meu passaporte indo para a Tailândia. Sim, isso mesmo. Eu não sabia nada, não fazia ideia de como organizar uma viagem e fui seguindo a minha amiga e as dicas dos amigos dela e dos outros dois amigos que iam com a gente. Seriam 20 dias de viagem, com uma passagem de praticamente um dia inteiro por Amsterdam. Era lindo demais. Era muito além do que eu podia imaginar.

Foram 12h do Rio até Amsterdam. E quando eu desci no aeroporto, foi como se fosse a primeira vez. Eu lembro que quando chegamos na plataforma do trem que ia levar a gente para o centro da cidade eu falei: Vou dar um beijo na boca daquele cara (meio perigosa essa mania de querer beijar a boca das pessoas quando estou feliz). Era muita felicidade – eu estava em outro mundo, aquele cenário era impossível de imaginar e eu tinha muitas histórias para contar. O mais lindo disso tudo? No final daquele dia eu ia entrar em outro avião e 12h depois estaria em Bangkok.

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O que começou a pegar para mim desde o início da viagem foi: cadê minha liberdade? Eu queria andar, olhar, sentir, perceber, experimentar tudo que fosse possível. Eu nunca estava cansada ou preocupada se a minha roupa estava bonita. Eu queria viver aquela história, e estar com outras pessoas deu ruído no meu roteiro. Eu estava em um conflito – eu amava os meus amigos, queria estar com eles, mas eu sentia como se falássemos línguas diferentes. Eu me senti tão só quanto naquele primeiro quarto de hotel, tomando cerveja e pedindo pizza. Eu me sentia presa. Eu me sentia tolhida. Eu tinha e queria companhia, mas, até hoje não sei dizer exatamente o que aconteceu. Eu estava sufocada. Talvez porque aquilo era muito grande para mim, porque eu esperei muitos anos para ter aquela experiência. Mas no fundo eu acho que era porque eu vivia aqueles dias como se eu nunca mais fosse voltar lá, muito por ter passado uma vida querendo fazer aquilo e não poder, principalmente por não ter grana. Só que dessa vez eu tinha. E eu não queria perder tempo me arrumando para sair, ou dormindo, ou tomando cerveja num bar vendo uns amadores lutando muay thai. Eu queria tudo.

Foi então que eu comecei a escrever a minha história. Na verdade, ela começou num acaso daqueles  que na maioria das vezes a gente demora demais e perde o timing. E uma coisa levou a outra e a outra e a outra. Eu tive um segundo para decidir e disse: Vocês podem ir, eu vou ficar – nos vemos em uma semana em Bangkok. E foi assim, como num sonho lúcido que eu escolhi que ia seguir só dali para frente. De início, eu não estava totalmente só, ia passar 3 dias com uma galera, depois ia seguir sozinha para outro lugar e só mais alguns dias mais tarde eu iria reencontrar meus amigos.

Na primeira noite, fomos para uma night em Koh Samui. E foi apenas incrível e vou usar uma cena de um filme que amo para tentar ilustrar:

No dia seguinte, eu acordei e todo mundo estava dormindo. Eu sentei nessa varandona aí da foto, olhei para esse marzão e tive um treco. Sim. Meu peito apertou e eu tive uma crise de choro. Eu me dei conta de que eu estava do outro lado do planeta e que ninguém que eu conhecia sabia onde eu estava. Que os amigos com quem eu tinha ido para lá estavam em outro país. Eu me dei conta de que eu era eu e somente eu pela primeira vez na vida. E estar sozinha naquele segundo me fez perceber que o mundo é uma coisa maravilhosa e que a vida pode e deve ser linda sim. Parece papo clichê-babaca-auto-ajuda. Mas não é não. E eu contei isso tudo só para dizer que a melhor parte da viagem é aquela em que a gente se sente livre, porque a maior parte do tempo na nossa vida real, no nosso roteiro burocrático, a gente luta para ser. A gente passa a maior parte do tempo tentando se sentir tudo e foi exatamente não me sentir nada que fez com que eu me sentisse completa. Muito além de ser tudo, ser parte de tudo é lindo demais.

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Daí em diante houve mais viagens. Não muitas, não tantas quanto eu gostaria. Mas as que precisavam acontecer. A maior delas foi pedir demissão do meu emprego um mês depois de voltar da Tailândia. Uma viagem maravilhosa, um barco que larguei para nunca mais voltar. Depois disso eu fui ao Qatar sozinha visitar um dos caras que conheci na Tailândia (sim, eu namorei um cara que mora no Qatar). Depois eu fui para Ilha Grande. Algumas vezes para São Paulo. E ano passado fui para Buenos Aires. Sozinha.

Eu demorei um bocado para conseguir parir um textinho aqui pro Faniquito. Um dia eu conto detalhes das viagens, dicas, lugares e coisas que gostei. Vou contar coisas sobre o Rio e sobre outros picos que eu gosto por aqui por perto. Mas eu precisava começar dizendo: não espere nunca alguém para conhecer o mundo, não tenha medo de ir, não tenha medo de se perder, não busque companhia fora de você. Mudar de lugar é aumentar o nosso raio de referência, é mudar as perspectivas, é se perceber desimportante, pequeno. É você ter que se amar e se bastar acima de tudo. E isso é bom.

(Seja do Neruda, seja da Martha, a frase que dá nome a esse texto é, em primeiro lugar, uma homenagem a uma amiga que viveu pouco, mas não morreu lentamente.)


Se você quiser participar das publicações do Faniquito com suas histórias, curiosidades e dicas de viagem (e não importa o destino), é só entrar em contato com a gente por esse link. Todo o material deve ser autoral, e será creditado em nosso site.

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (2/6)

31 de agosto de 2015

Acordamos pouco antes do sol nascer. Passamos a noite no mais absoluto silêncio, ainda nos acostumando ao aperto dos sacos de dormir, mas o cansaço do primeiro dia de caminhada fez com que as dificuldades de adaptação não fossem páreo para nossa necessidade de descanso. A manhã ainda escura exibia em nosso horizonte os tepuis ainda sob névoa. Esticamos o corpo, e começamos a nos vestir para seguir caminho logo após o café da manhã.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

As nuvens ainda escondiam nosso futuro.

A equipe de guia e ajudantes era responsável por todas as refeições, além de levantar acampamento, literalmente. Todos já estavam acordados, e nosso café não tardou a ser servido. Novamente o suco colorido, leite, chá, frutas, manteiga, fritada (que eu passei adiante), e uma espécie de pãozinho frito estavam na mesa assim que o sol apareceu. Aos poucos todo mundo foi se aproximando, e a mesa que estava vazia ficou cheia. De lá mesmo, recebemos algumas instruções de como poderia ser nosso dia, e alguns cuidados que devíamos tomar pelo caminho.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

Não era o café da manhã da Xuxa, mas estava bem gostoso.

O planejamento do dia consistia em chegarmos à segunda base perto da hora do almoço, justamente para descansarmos durante um período maior antes da subida do Monte Roraima. Atravessaríamos dois rios durante a trilha, antes de um trecho mais extenso de caminhada. Bem alimentados e de mochila nas costas, começamos nosso segundo dia.

Após um breve período de caminhada, fizemos nossa primeira pausa perto de uma igrejinha no caminho, onde nosso guia contou um pouco da história da região – e da própria igrejinha. Pouco adiante, descemos um morrinho e encontramos nosso primeiro rio.

Um longo caminho pela frente...

Um longo caminho pela frente…

...e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

…e uma igrejinha logo de cara. Porque toda proteção é bem-vinda.

Pausa.


Nessa descida (uma descida besta, que se diga), meu joelho estalou. E dali em diante eu teria meu próprio drama pessoal para cuidar. Como o corpo estava quente, não senti nada naquele instante – e seriam os últimos momentos em que eu estaria “plenamente saudável” – entre aspas mesmo.

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).

Dé, dando tchau pro meu joelho (foi nessa descidinha que eu me arrebentei).


Voltemos.

Chegamos ao rio. E lá recebemos algumas instruções bastante curiosas, que eu vou listar agora mesmo:

  • Para atravessar, apenas meias nos pés: sim, nada de calçados, chinelos ou mesmo pés descalços. Pisaríamos em pedras, e para isso nos foi pedido naquela reunião ainda no albergue que levássemos um par de meias para esse fim.
  • Calçados amarrados na mala ou pendurados no pescoço: nada de segurar botas ou tênis com as mãos, pois em caso de queda você não perde seus calçados (o que seria um verdadeiro suicídio para a trilha, ou quase isso) e suas mãos estão livres para apoiar seu corpo.
  • Um por vez, com calma e sem pressa: sim, nada de bancar o Indiana Jones. A ideia é todo mundo passar numa boa, e com calma. O Ricky estava no meio do rio, e nos auxiliava com a travessia.
Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Ricky, atravessando e se preparando pra nos ajudar em um dos rios.

Hora de seguir as instruções, se preparar...

Hora de seguir as instruções, se preparar…

...e encarar a travessia. De meias.

…e encarar a travessia. De meias.

E assim procedemos. Depois de atravessar, as meias iam pra um saquinho (de onde seriam tiradas logo mais para a segunda travessia). Secamos os pés, colocamos outro par de meias e seguimos. Mais algum tempo de caminhada, o segundo rio, e os mesmos passos. Com todos vivos e novamente calçados, era hora de vencer os quilômetros restantes.

O dia estava bonito e o sol dava as caras. Como bom sol da manhã, ele mais agrada que machuca. O caminho do dia era bem mais acidentado, com uma subida mais acentuada em alguns trechos. Com pequenas pausas para água ou uma barrinha de cereal providenciais, fomos aos poucos nos afastando do grupo, e essa seria a tônica devido ao nosso quase nenhum preparo físico para a jornada: estávamos fadados a sermos sempre os últimos a chegar a nossos destinos, e mesmo sendo os que levavam a bagagem menos volumosa, isso ficava cada vez mais claro. O esforço do dia anterior cobrava sua conta, e somava-se às subidas cada vez mais longas. Parávamos, prosseguíamos, parávamos de novo e assim por diante.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Um longo caminho, num dia de sol e céu limpo.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Nas pausas, o nosso cansaço era evidente.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Pra aliviar o percurso, pequenas nascentes e água gelada.

Mas as subidas eram grandes, e....

Mas as subidas eram grandes, e….

...não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

…não tinha água que desse jeito na gente. Nessa imagem, a parede já estava bem mais próxima.

E mais treze quilômetros vencidos!

E mais treze quilômetros vencidos!

Mas as coisas fluiram, e chegamos ao final da nossa jornada – cansados, como não poderia deixar de ser, mas inteiros (com exceção do meu joelho, que ainda não doía tanto). Estávamos sedentos por um banho, pois o esforço havia sido bem maior do que o do dia anterior. Porém, o carregador que estava com nossa bagagem ainda não havia chegado, e não tínhamos com o quê nos vestir se entrássemos na pequena cachoeirinha, situada pouco abaixo da área de camping. Esperamos algum tempo e nada. O corpo esfriou e éramos os únicos a não conseguir tomar o tal banho. Eis que quase na hora do almoço, o rapaz chega – um dos carregadores havia passado mal, e os outros resolveram seguir com ele dali em diante. Com nossas roupas e toalhas em mãos, resolvemos tentar a sorte e ver “o que conseguiríamos lavar”.

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

Enfim instalados, o paredão ali atrás, mas cadê nossa bagagem?

O local da pequena cachoeira era bem escorregadio, com lama e o escambau. Ali formava-se uma pequena piscina, onde todo mundo se lavava, e podíamos encher nossas garrafas na queda d’água, que ficava escondida entre as pedras. Mas assim que colocamos os pés na piscina, ficou claro que não teríamos direito a banho: a água CONGELAVA PENSAMENTO DE TÃO GELADA. Ainda quentes, possivelmente nos arriscaríamos por puro ímpeto, mas – acreditem – não dava. Tomamos o tradicional banho de gato, e nos demos por satisfeitos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Não dá pra imaginar o quão gelada estava essa água, meus amigos.

Guardem essa informação: TOMAMOS BANHO, mesmo que precariamente.

Voltamos ao acampamento. Almoçamos tranquilamente, e teríamos toda a tarde para descansar. Conversamos um pouco com o pessoal, tentamos descansar em nossa barraca (mas o canadense e o japonês cismaram de “jogar baseball” justamente onde estávamos, e permanecer na barraca tornou-se uma tarefa impossível), e no fim das contas ficamos mesmo na área das refeições – uma espécie de tenda, junto com outras pessoas de nosso grupo, e nosso guia. De lá, podíamos enxergar claramente o paredão do Roraima, que agora estava muito próximo, e ficamos tentando advinhar como subiríamos aquilo. Onde estava a trilha?

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A tenda, onde serviriam almoço e jantar pra gente.

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

A ideia era um cochilo, mas quem consegue com esse baseball rolando do lado de fora?

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

Depois de muito imaginar, confirmamos o trajeto que faríamos no dia seguinte.

O Ricky nos explicou que um cara havia conseguido subir de muletas. Eu olhei de novo praquela trilha verde, que me parecia tão impossível, e fiquei na dúvida se aquele papo era realmente verdade, ou se não era conversa pra dar coragem aos que estavam temerosos. Meu joelho já havia esfriado, e doía consideravelmente. Improvisamos uma semi-imobilização, com Salompas e uma canga funcionando como faixa por dentro da calça. A esperança é que a tarde/noite de descanso me preparassem para o desafio do dia seguinte. E por melhorem que fossem as histórias de superação, ficar diante do Roraima e não se intimidar me parecia totalmente impossível.

Chegou a noite, e assim que a luz natural caiu, nos serviram uma espécie de guisado de frango – muito bom, por sinal. Tivemos a visita de uma cobra pouco antes do jantar, que mesmo pequena acabou assustando os menos destemidos. Novamente, destacaram-se as lanternas de cabeça.

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria...

Uma tarde preguiçosa, uma noite fria…

...uma cobra querendo jantar...

…uma cobra querendo jantar…

...e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

…e um guisado de frango na mais absoluta escuridão.

Jantamos, e pouco depois nos recolhemos. Os pés da Dé doíam, e meu joelho idem. Nos cuidávamos dentro da barraca, na base da massagem e farmacinha básica. Não demoramos a dormir, pois sabíamos que no dia seguinte teríamos possivelmente o maior desafio dessa jornada.

Ao menos, era o que pensávamos.

Argentina, Áustria, Brasil, Estive lá

A vez das pessoas

27 de agosto de 2015

Experimentamos durante o último final de semana a sensação de, pela (nossa) primeira vez, circular à pé no asfalto da maior avenida da maior cidade da América do Sul. Não é qualquer coisa restringir o acesso da Avenida Paulista a pedestres e ciclistas, e é uma das várias atitudes que nosso atual prefeito vem tomando para humanizar um pouco mais a metrópole virulenta que vivemos. As atitudes de Fernando Haddad têm sido polêmicas, muito mais pela cultura de ódio permeada atualmente na população brasileira, do que pelas ações em si.

A utilização de espaços públicos é coisa a qual não estamos acostumados, ainda mais quando ela acontece de graça e com fácil acesso. O paulista orgulha-se em ter o Ibirapuera como parque, mas sabe o quão difícil é seu acesso, e a quantidade de pessoas que o frequenta (principalmente nos finais de semana) afugenta os que procuram um pouco de paz e tranquilidade, ou mesmo outras alternativas de espaço – com comércio, restaurantes, espetáculos ou qualquer outro tipo de lazer. São Paulo é estigmatizada por carimbar com filas e/ou preços proibitivos suas principais atrações (temos o ótimo Sinta-se Paulistano satirizando essa imagem mais do que merecida que a cidade tem). E isso mina o ânimo de quem busca um pouco de sossego, ou ainda quem não tem dinheiro pra prestigiar tais atrações, afinal de contas, já temos filas, stress e preços altos suficientes durante a semana. Prorrogar essas dores cotidianas para nossos dias de folga é coisa a ser considerada. Sempre.

Longe de São Paulo vivemos dois momentos muito marcantes da chamada “vida ao ar livre” antes de presenciarmos o acontecimento do último domingo, e vamos contá-los rapidamente por aqui:

Começando por nossos vizinhos, e sua notória simpatia por espaços públicos. Tivemos a melhor das impressões em nossa primeira viagem ao notar que não era somente nos grandes parques (como o Rosedal, na foto) que os argentinos se esparramavam, com suas cuias de mate, livros, radinho, bola e toalha. Grandes ou pequenas, em Buenos Aires ou Ushuaia, eles têm por hábito curtir as praças, calçadões e ruas com sua família e amigos. Esses espaços se fundem com a cidade num convívio dos mais harmoniosos possíveis. De fácil acesso e espalhados pela cidade, perto ou longe do metrô, dia ou noite, de bicicleta ou à pé, as praças e parques argentinos estão sempre cheios de gente, todos os dias da semana.

Parques, praças e muita, muita gente.

Parques, praças e muita, muita gente.

Atravessamos o oceano e chegamos até Viena (que foi tema de nosso texto anterior) – uma cidade notoriamente cara, todos sabemos ou fazemos ideia. Mas com algumas características que valem MUITO destaque: a começar pela semelhança com as cidades argentinas no que se diz respeito aos parques e praças. Gente de todas as idades se espalha pelos gramados e alamedas da cidade, dia e noite.

Se espalhar no gramado: aprovamos.

Se espalhar no gramado: aprovamos.

Mas o que mais nos tocou foi um acontecimento em particular: acabamos não assistindo a nenhuma ópera na cidade, e isso poderia ser uma lacuna em nossa viagem. Mas ao passarmos em frente ao Wiener Staatsoper (a Ópera de Viena), um imenso telão na sua lateral transmitia ao vivo e com um som muito bacana o espetáculo que acontecia lá dentro – e cujos preços são condizentes a uma ópera. Em Viena. Na Ópera de Viena. Uma multidão de pessoas assistia ao espetáculo sentada na calçada, no chão ou em cadeirinhas e banquinhos trazidos de casa, comendo uma pizza e tomando um vinho. Diversão, música e cultura –  de graça. Fizemos o mesmo, e ficamos por alguns minutos ali, curtindo não só a ópera, mas as pessoas. Era dia de semana – se não me engano, uma quinta-feira. Um momento que a gente certamente não esquecerá.

Ópera na rua. Quem diria?

Ópera na rua. Quem diria?

Voltemos à Paulista, que experimentamos ao lado de um casal de amigos cariocas no último domingo. Diversos comerciantes sabiamente abriram suas lojas. Outras tantas pessoas levaram seus carrinhos (de comida, de bugigangas, de serviços) pra calçada, e juntaram-se às tradicionais feirinhas do MASP e do Trianon. Vimos grupos de teatro, bandas tocando, gente fotografando, fazendo piquenique, lendo livro na calçada. Pais e filhos à pé ou de bicicleta, num clima tão bom que nos sentimos… turistas. Existe sensação melhor que essa?

Em São Paulo, o Minhocão já tem o trânsito de veículos restrito há tempos durante os finais de semana. Algumas avenidas da cidade (principalmente as atendidas por metrô e trem) como a Paulista, a Faria Lima e a Sumaré são sim ótimas opções para o passeio livre em dias de descanso. Temos as Viradas Culturais, onde a cidade toda vira um imenso palco dia e noite (e cuja qualidade e organização vêm melhorando com o passar do tempo). Com a possibilidade de utilização desses espaços, podemos sair de casa. Conhecer pessoas, reencontrar amigos. Nos divertir sem gastar tubos. Fazer nosso piquenique. Desafogar o Ibirapuera e outros parques. Termos uma vida mais saudável, sem enterrar nossas finanças numa academia. Enfim, aproveitar uma cidade que se orgulha tanto do tamanho que tem, mas que tem se mostrado dia-a-dia uma metrópole de gente egoísta e intolerante.

Talvez nos falte educação, ou estejamos saturados. Mas nenhuma justificativa explica o fato nos afastarmos cada vez mais daquilo que o ser humano tem de mais precioso – a possibilidade de conviver em harmonia com pessoas de diferentes origens, características e gostos. Ninguém que está feliz julga alguém que também está sorrindo – seja pelo motivo que for, é um fato. E nos propiciar alguns momentos de felicidade em lugares que estamos acostumados a correr e xingar é uma iniciativa que nós apoiamos e prestigiamos irrestritamente.

Se pudéssemos resumir esse texto em uma imagem, seria esta.

Se pudéssemos resumir esse texto em uma imagem, seria esta.

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (1/6)

17 de agosto de 2015

Já fizemos dois textos sobre essa viagem (o primeiro, com um resumo geral nas palavras da Dé, e o segundo, descrevendo nossos preparativos para a subida). Chegou a hora de detalharmos como foram os dias que passamos por lá. Foram seis dias de trekking. Serão seis textos (intercalados com outros assuntos aqui no Faniquito), que servirão de guia aos que pretendem dia desses encarar essa verdadeira aventura, que é vencer um dos tepuis mais bonitos e difíceis do mundo.

Comprado o tour, nos reunimos na manhã daquela que, na nossa contagem, seria o início do nosso primeiro dia. Estávamos em 15 pessoas (nós dois, brasileiros, cinco neozelandeses, dois alemães, dois argentinos, um canadense, uma americana, um japonês e uma iraniana), e encontramos a equipe que nos levaria até lá (que contava com os carregadores – venezuelanos – e nosso guia, um jamaicano). A diversidade do grupo nos traria muito em breve a primeira lição da viagem: por mais diferentes que fôssemos (e éramos – detalhes logo mais), estávamos todos no mesmo barco. E em seis dias de total isolamento do restante do planeta, nos conheceríamos inevitavelmente. Pode parecer um tanto assustadora a descrição de um momento desses, mas é uma das melhores memórias que trouxemos de lá.

Nossa família pelos próximos seis dias.

Nossa família pelos próximos seis dias.

Carregamos os carros com as bagagens de todos, e seguimos rumo à reserva. No caminho, uma parada aos que gostariam de comprar água ou algum tipo de alimento/protetor para levar durante a trilha. Nós não compramos nada, e isso foi uma decisão parcialmente correta (pois teríamos água potável para carregar nossas garrafinhas na chegada – mas não o fizemos, e por isso o “parcialmente”). Os carros seguiram pela estrada, e algum tempo depois um desvio em uma estrada de terra sinalizava que estávamos próximos de nosso destino. “Lá na frente”, sinalizou um dos carregadores. Todos os que estavam na parte de trás do carro procuraram rapidamente, e lá estava a primeira imagem do Monte Roraima – ainda a 30 km de distância.

A primeira imagem do gigante.

A primeira imagem do gigante.

Obviamente, ficamos maravilhados e assustados, porque o bicho já parecia enorme.

Poucos minutos se passaram e chegamos à base. Naquele momento estávamos bastante ansiosos, e igualmente sem saber direito o que fazer. Ficamos próximos ao grupo, e ali recebemos nossos sanduíches (que seriam nosso almoço pelo caminho), isolantes de borracha (aquela espécie de tapetinho, que você coloca sob a barraca para proporcionar algum conforto quando deitar), e um saco plástico grande pra cada um (para em caso de chuva, “ensacar” as mochilas e evitar que tudo ficasse ensopado – guardem essa informação). Neste momento, uma pausa para explicações:

TODOS do grupo levariam suas mochilas nas costas, menos nós, que alugamos o serviço de um carregador – levaríamos somente duas mochilas pequenas, com nossos casacos, garrafas, algumas barrinhas e as máquinas fotográficas. Nos sentimos meio mal na hora (os dois gordinhos, e que não levam mochila nas costas), mas esse sentimento é estúpido, acreditem. A Mercedes (argentina), que fazia parte do grupo, ao ver ali a possibilidade de contar com esse serviço, acabou alugando na mesma hora. Fizemos isso por acharmos que não daríamos conta de levar aquele monstro nas costas. Ela fez por conforto (seu futuro desempenho na trilha comprovaria isso). Mas essa pausa é para dar a dica: SE VOCÊ ACHA QUE NÃO DÁ CONTA, ALUGUE UM CARREGADOR SIM. Não é crime, e o trajeto exige decisões acertadas. Essa foi a nossa melhor decisão, com toda a certeza.

No desembarque, nada muito claro - então, imite os outros.

No desembarque, nada muito claro – então, imite os outros.

Um dos carregadores se preparando, e a Mercedes (à esquerda na foto).

Um dos carregadores se preparando, e a Mercedes (à esquerda na foto).

Os caras são incríveis. Totalmente incríveis.

Os caras são incríveis. Totalmente incríveis.

Ainda antes da saída, um banheiro para as últimas necessidades “na civilização”. Erramos em não pegar água da torneira de lá (que é potável), e começamos a caminhada de garrafas vazias. Em maiúsculas: NÃO FAÇAM ISSO. Os carregadores montaram suas cestas gigantes, com nossas bagagens, mantimentos, ferramentas, barracas e todo o material necessário para os próximos seis dias, e dali seguimos extremamente animados. Já era começo de tarde, e tínhamos treze quilômetros até o primeiro acampamento, onde passaríamos a noite.

O registro da nossa saída :)

O registro da nossa saída 🙂

A caminhada é razoavelmente tranquila de início. Mesmo com o sol na cabeça, o caminho possuía uma parte razoável debaixo de árvores. Subidas e descidas exigiam algum esforço inicial, e o suor não tardou a aparecer. Aos poucos, notávamos qual seria nosso ritmo durante o primeiro dia, e encontramos algumas dificuldades – que aparentemente, não eram só nossas. Era um pensamento reconfortante saber que “não seria fácil pra mais gente”, além de nós dois.

A primeira parada aconteceu no meio de uma subida, e próxima a um riozinho, pra nossa alegria. Pelos próximos dias, nossa água viria exatamente assim – de riachos, pequenas cachoeiras e nascentes. Os estrangeiros (se não todos, quase todos) pegavam água desses locais e colocavam pastilhas solúveis de purificação de água nas garrafas. Alguns, para disfarçar o sabor deixados pelas pastilhas, misturavam Tang na água (sim: eca). Segunda dica desse texto: NÃO FAÇAM ISSO, PORQUE NÃO PRECISA. O lugar é totalmente livre de qualquer contaminação, e a água é pura e absolutamente gelada. Beba sem medo – e muito, porque estar hidratado para uma caminhada dessas é essencial.

Água, essa dádiva.

Água, essa dádiva.

E o calor da caminhada já dava seu recado.

E o calor da caminhada já dava seu recado.

Seguimos adiante. Fizemos algumas outras paradas juntamente do grupo, onde aos poucos conhecíamos alguns de nossos companheiros, além do Ricky – nosso guia, falastrão e todo cheio das amizades. A tarde foi passando, e mesmo com um cansaço razoável não desgarramos do grupo. Lá adiante avistamos nosso acampamento. Apertamos um pouco o passo, e assim que chegamos as barracas já estavam montadas. Escolhemos a nossa, deixamos nossas coisas na entrada e fomos correndo para o rio, que passava ao lado.

Um dos heróis da equipe, tomando um fôlego...

Um dos heróis da equipe, tomando um fôlego…

...e a gente, duplamente sem ar, com um visual desses pela frente.

…e a gente, duplamente sem ar, com um visual desses pela frente.

Lá a Dé tomou o primeiro banho de rio da vida dela. Foi uma situação bem engraçada, pois os neozelandeses não tinham problema algum em ficar de cueca, calcinha e sutiã – ao contrário dos brasileiros, argentinos e americanos do grupo. Alguns não tomaram banho (sim, cada um com seus problemas), e depois de algum malabarismo conseguimos nos trocar ali mesmo antes de voltar pra barraca. Um adendo: os PURI PURIS da região – porque cada pedaço do planeta tem seu mosquitinho picador FDP. Depois do banho de rio, banho de repelente.

As barracas montadas na nossa chegada...

As barracas montadas na nossa chegada…

...e a nossa. Botas e mochilas do lado de fora, pois essa seria nossa casa durante os próximos 5 dias (no sexto, dormiríamos em uma cama novamente, se sobrevivêssemos).

…e a nossa. Botas e mochilas do lado de fora, pois essa seria nossa casa durante os próximos 5 dias (no sexto, dormiríamos em uma cama novamente, se sobrevivêssemos).

Anoitecia, e o guia e os carregadores eram também os responsáveis pela comida e bebida da noite. Fizeram um macarrão com carne, e um suco (que seria repetido em todas as refeições pelos próximos seis dias). Comemos com gosto, afinal de contas estávamos todos felizes e famintos por vencermos o primeiro dia. Ali mesmo todos nos apresentamos e aos poucos nos familiarizávamos com os nomes de todos. Boa parte do grupo tinha aquelas lanternas que funcionam amarradas a uma faixa na cabeça, parecida com aqueles capacetes de mineiros: zilhões de vezes melhores que nossas lanterninhas de bolso, e um ítem a ser considerado com carinho em viagens semelhantes. Com a refeição encerrada e o bucho cheio, socializamos um pouco mas nos retiramos na sequência. Era hora de estrear nossa barraca e os sacos de dormir. Além do primeiro banho de rio, seria a primeira noite de acampamento da Dé. Não duramos muito e capotamos. Deviam ser 20h ou 21h, e a escuridão era total. Terminamos bem nossa primeira prova, mas ainda era o começo.

Mal sabíamos o que nos esperava. E não seria pouco.

Brasil, Faniquito, Perrengues

A primeira vez

10 de agosto de 2015

Acordamos e decidimos abrir o guia, numa página aleatória. Seria aquele nosso destino do dia – dependendo, do final de semana. Minha mãe mandou bater… Cunha. Pronto, temos pra onde ir. Onde fica Cunha? Não faço a menor ideia…! Vamos levar o guia pra padaria e descobrir enquanto a gente toma café? Vamos.

E assim nasceu nossa primeira viagem (já resumida em um parágrafo aqui mesmo, certa vez).

Café tomado, uma mochilinha com troca de roupa. Pegamos o carro e a estrada. Cunha é uma cidadezinha paulista (bem conhecida, diga-se – a gente é que nunca tinha ouvido falar mesmo), localizada quase na divisa com o Rio de Janeiro. Pelo caminho fomos descobrindo que é também a capital nacional do Fusca, entre outras curiosidades que nosso guia nos proporcionava. Mas não estamos aqui pra falar de Cunha – por mais que devêssemos. A história vale um texto porque nos propusemos a meter as caras num lugar novo de uma hora pra outra, e assim fizemos.

Das melhores sensações.

Das melhores sensações.

Apesar da carta de motorista desde os 21, seria minha primeira estrada na vida (uma vez que comprei meu carro só 2008 – ano em que reaprendi na marra a dirigir). Seguimos do final da manhã até a metade da tarde um caminho gostoso, com calma e uma certa ansiedade de quem está “fazendo acontecer” pela primeira vez na vida. Assim que chegamos, encostamos o carro num canto e fomos aproveitar o sossego do lugar. Tudo novo, tudo acontecendo pela primera vez – a gente inclusive, como casal novo e com a massa fresca, de quem ainda não sabia se teria futuro. Um passeio pelo centrinho, algumas fotos do fim de tarde, era hora de procurar algum lugar para passar a noite.

Um pouco de sossego, um novo amigo...

Um pouco de sossego, um novo amigo…

...um fim de tarde e uma boa história pra contar.

…um fim de tarde e uma boa história pra contar.

Rodamos a cidade inteira, literalmente (parece exagero, mas a cidade inteira é rodável, acreditem). Nenhuma vaga, em lugar algum. Recomendaram que fôssemos pra Parati. Longe demais pra risco semelhante, acabamos indo pra Guaratinguetá – igualmente sem vagas. Eis que num acaso bizarro, perguntamos no meio da estrada pra um motoqueiro se ele sabia de algum lugar, e ele nos sugeriu um motelzinho em Lorena. Agradecemos, mas não sabíamos sequer como chegar.

Eu levo vocês lá – ele disse. E a gente seguiu o motoqueiro. Até O MOTEL – que era um pulgueiro, mas tinha vaga, um chuveiro e uma cama. Nos bastava.

Com tudo absolutamente do avesso ao que havíamos imaginado, resolvemos seguir para Ubatuba no dia seguinte. Tentaria salvar aquela primeira viagenzinha indo até Itamambuca, mas chegando no entroncamento para as praias, o caminho estava totalmente entupido de gente. Nos conformamos em ficar por ali mesmo, numa praia mais central (e cuja qual obviamente não lembro o nome), que seria nosso destino para o almoço.

Que foi sensacional, e disso me lembro bem.

Algumas dessas conchinhas hoje estão aqui em casa.

Algumas dessas conchinhas hoje estão aqui em casa.

E nosso almoço não foi nada ruim, pra algo que nem namoro era ainda.

E nosso almoço não foi nada ruim, pra algo que nem namoro era ainda.

Paulistas que somos, botar o pé na areia já valeria pelo final de semana. Mas naquele momento a Dé sugeriu irmos atrás de um lugar chamado “cachoeira do macaco”, que ela havia lido (no guia ou numa placa, também não lembro). Procuramos incessantemente, até sermos guiados por um frentista, e darmos de cara com uma caixa d’água da Sabesp. Mais algumas voltas, e terminamos num lugarzinho mais gostoso, que compensou aquela volta toda.

A água que queríamos não estava numa caixa...

A água que queríamos não estava numa caixa…

E a soma de tudo deu... nisso :)

E a soma de tudo deu… nisso 🙂

Deu tudo errado, e nada saiu como planejado. Não importa. A primeira vez é inesquecível (pro bem ou pro mal, sabemos todos disso), e dali em diante começaríamos a ganhar experiência nessa coisa de viajar.

Tudo isso pra dizer e insistir: bote o pé na estrada. Sim, a situação econômica está terrível pra todo mundo. Mas assim mesmo, com um mínimo (às vezes, um tanque de gasolina, dinheiro pro pedágio e uns sanduíches na sacola térmica) a gente aumenta nosso mundo pessoal. Pode dar tudo errado: você pode dormir num pulgueiro, levar multa, pegar estrada no breu, dar de cara com uma linda e frondosa caixa d’água. Ainda assim será uma história a ser contada lá na frente. E toda história, quando bem contada, é muito boa. Saber rir da própria desgraça, mais ainda. Então, meta as caras. E não poupe seu dedo de fazer o trabalho do cérebro quando o assunto for escolher um destino, quando este insistir em te podar desses momentos.

Argentina

Azul

4 de agosto de 2015

31 de janeiro de 2013. Meu aniversário.

Ainda era cedo quando o ônibus parou em frente ao nosso albergue. Ainda vazio, seguimos pelas pequenas ruas de El Calafate recolhendo mais algumas pessoas do grupo do qual a partir daquele momento fazíamos parte. Seguimos pela estrada por pouco menos de duas horas – exatos 78 quilômetros, até a entrada do Parque Nacional dos Glaciares. Uma pausa rápida e providencial para aquela visita básica ao banheiro, e pouco depois, já de volta ao ônibus, seguimos por uma belíssima estradinha em direção ao nosso destino. No rádio do ônibus, por algum capricho divino, os Rolling Stones tocavam. E nos primeiros acordes de She’s A Rainbow, avistamos o gigante azul logo adiante.

Não fazia ideia do que esperar quando a Dé havia comentado sobre o Perito Moreno. Assim que chegamos a Calafate, procuramos logo de cara uma agência (de várias que estão disponíveis na cidade) que oferecesse o passeio. Ainda no escritório, nos foram oferecidos dois tipos de passeio pelo Glaciar: um mini trekking (de aproximadamente uma hora), e o big trekking (que levava de 3 a 4 horas). Pesquisados os relatos de quem havia estado por lá, optamos pelo mini. Uma escolha acertada e totalmente recomendada, como contaremos a seguir.

Saímos do ônibus e pegamos um barco, que nos levaria ao início do trekking. Para tanto, atravessar o rio era preciso, e na embarcação recebemos as primeiras instruções de como proceder no Glaciar. Estaríamos sempre próximos de nossos guias, sendo que o grupo seria acompanhado de dois deles – um no início, um no fim. Seguiríamos o passeio em fila. Todos usaríamos luvas e grampones – aqueles “calçados” que são encaixados debaixo das botas, para não escorregarmos no gelo. Ao desembarcar, um dos auxiliares do tour mandou um “Vai Corinthians” pra mim. Definitivamente, eu estava em casa.

A primeira imagem mais de perto já era suficientemente avassaladora...

A primeira imagem mais de perto já era suficientemente avassaladora…

...e quanto mais perto, mais impressionante era aquele imenso bloco de gelo.

…e quanto mais perto, mais impressionante era aquele imenso bloco de gelo.

Estávamos razoavelmente distantes do Glaciar quando nos reunimos para repassar instruções e saber um pouco mais sobre aquele lugar nas explicações de nosso agora apresentado guia de grupo (dica: o grupo é dividido em dois grupos menores – com guias em inglês ou em espanhol. Grupos de língua espanhola SEMPRE são menores…). Mesmo de longe, o visual já era impressionante. O paredão de gelo possui mais de 20 metros de altura, e sua área total é maior que a cidade de Buenos Aires. É um monstro azul, no sentido literal da expressão, e poucas definições se encaixariam tão bem.

Quando dizemos MONSTRO, não é em sentido figurado.

Quando dizemos MONSTRO, não é em sentido figurado.

Quando dizemos AZUL, também não. Isso não é saturação: é a natureza mesmo.

Quando dizemos AZUL, também não. Isso não é saturação: é a natureza mesmo.

Perto dali, fomos equipados. Pegamos nossos pares de luvas (que não têm nada a ver com frio, mas sim com proteção em caso de queda no gelo), deixamos nossas mochilas guardadas, e colocamos nossos grampones com a ajuda de outros guias. Depois de perguntar pra Dé o que ela fazia da vida, o guia disse: “Eu trabalho aqui, todo dia. Chato né?”… Formamos a fila, e estávamos prontos pra começar nosso mini trekking.

"Eu trabalho aqui todos os dias". Sim amigo: invejamos.

“Eu trabalho aqui todos os dias”. Sim amigo: invejamos.

Mas que não deve ser fácil calçar e caminhar com isso todos os dias, não deve.

Mas que não deve ser fácil calçar e caminhar com isso todos os dias, não deve.

Caminhar no gelo é uma experiência sensorial. E isso aos 33 anos produz um efeito acachapante… os primeiros passos são temerosos e desengonçados, mas pouco depois você pega o jeito e a coisa flui. Todos em fila, começa um sobe e desce divertido, com pausas para explicações geográficas e estruturais – e para um gole d’água, que você pega do chão. E é a água mais gostosa do mundo, saibam.

Hora de subir. De descer. De subir, e descer de novo.

Hora de subir. De descer. De subir, e descer de novo.

Os paredões azuis são impressionantes – quanto mais azul, mais antigo o gelo. Manter a trilha é certeza de segurança, uma vez que existem áreas mais frágeis e algumas crateras que a gente só percebe depois de ser avisado. Não é um lugar pra brincadeira. Com o céu azul, a jaqueta passa a incomodar um pouco, pois a suadeira é garantida. Uma hora naquele ritmo, acredite, é mais do que suficiente. É proibido parar para fotos pelo caminho, a não ser que o grupo também esteja parado – justamente para não atrapalhar o fluxo do passeio. Leve cartões de memória – sim, mais de um, pois uma beleza dessas não é todo dia que a gente vê.

A gente merecia uma selfiezinha nesse fundo azul maravilhoso.

A gente merecia uma selfiezinha nesse fundo azul maravilhoso.

É um passeio puxadinho...

É um passeio puxadinho…

...mas TOTALMENTE recompensante!

…mas TOTALMENTE recompensante!

Uma cratera enorme. Portanto, nada de desgarrar do grupo.

Uma cratera enorme. Portanto, nada de desgarrar do grupo.

Ao final da trilha, um whiskey com gelo que o guia tira do chão ali na hora. E um alfajor, que ninguém é de ferro. Não teria adjetivos suficientes pra qualificar o passeio – que ainda não havia chegado ao fim.

Hora da recompensa (mais uma, afinal) :)

Hora da recompensa (mais uma, afinal) 🙂

Um lanche (que você mesmo leva na mochila, e cujo lixo é levado de volta – nada é fornecido dentro do parque), uma pequena pausa pro descanso, e o barco volta pra pegar o grupo. Dali, alguns minutos de ônibus até a entrada dos miradores, onde um passeio de pouco mais de 30 minutos fecha o tour pelo Perito Moreno. E se você acha que tudo de mais bonito já havia sido visto, preste atenção às próximas imagens.

Sim, é inacreditável.

Sim, é inacreditável.

E também um dos lugares mais bonitos que eu já vi.

E também um dos lugares mais bonitos que eu já vi.

Passear pelo Glaciar Perito Moreno é, no mínimo, transformador. Não é uma recomendação de viagem – é uma ordem, e uma pendência na vida de qualquer pessoa que goste de sair do quintal de casa. Pra se sentir mais vivo, e um presente de aniversário que eu jamais esquecerei.