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La Paz

Bolívia

O azul mais azul do Titicaca

15 de março de 2016

O ônibus ia de Copacabana a La Paz, por um caminho que mal conhecíamos (mas que de tão bonito, será abordado num texto só pra ele). Num determinado momento, ele parou. Tínhamos que descer, e já esperávamos por algum problema mecânico ou coisa do tipo – apesar do aparente bom estado do veículo, não seria nenhuma surpresa. Não era um problema, e sim um obstáculo. Surpresa sim, mas a melhor possível: atravessaríamos o Lago Titicaca de barquinho.

Não lembro se era manhã ou tarde. Estava um belo de um sol, mas o vento que bate naquela região é gelado de verdade. Enquanto aguardávamos o barquinho chegar, um esclarecimento necessário: minha mãe nunca tinha andado de barco, e além disso não sabe nadar. Havia uma expectativa quanto à reação dela, que seria confirmada ou desmentida na sequência. Compramos os bilhetes (sim, porque a surpresa ia além, e o tal barquinho não fazia parte do custo total do passeio – só pra reafirmar a importância de, durante uma viagem, ter sempre um dinheirinho no bolso pra possíveis ocorrências). O barquinho chegou.

Se você pensa que tudo hoje em dia é digital...

Se você pensa que tudo hoje em dia é digital…

Um pequeno atracadouro, onde esperamos nosos barquinho.

Um pequeno atracadouro, onde esperamos nosos barquinho.

Pra que possamos entender o azul que dá título ao texto, essa é apenas uma ideia. Bovamente, as fotos não fazem jus.

Pra que possamos entender o azul que dá título ao texto, essa é apenas uma ideia. Bovamente, as fotos não fazem jus.

Entramos um a um, e antes de sair colocamos os coletes salva-vidas. Minha mãe ficou razoavelmente aliviada com o acessório. Puxamos as máquinas fotográficas, enquanto mais algumas pessoas entravam. Os locais aparentemente não precisavam ou não queriam os coletes, e se posicionaram de pé mesmo. Não sabíamos o quão certo aquilo tudo estava, mas sem saída, confiamos no que estava por vir. O velhinho ligou o motor e partimos para a travessia.

Todos à bordo, com ou sem colete...

Todos à bordo, com ou sem colete…

...era hora de preparar a máquina fotográfica e mandar aquele hang loose pra Jesus.

…era hora de preparar a máquina fotográfica e mandar aquele hang loose pra Jesus.

Um barquinho pequeno, mas honesto, e a velha mãe se deixou levar pelo momento. Era muito difícil se deixar amedrontar por tanta beleza. Com a cordilheira mais adiante, a travessia entre os dois vales servia de moldura pra um azul profundo daquele mundo de água gelada. O Titicaca é um dos pedaços mais bonitos da Bolívia, numa paisagem com gosto de América do Sul. Foram apenas alguns minutos, mas cuja memória ainda é cristalina.

Nosso comandante...

Nosso comandante…

...naquele tapete azul.

…naquele tapete azul.

Seguiram-se alguns minutos de total tranquilidade e beleza.

Seguiram-se alguns minutos de total tranquilidade e beleza.

Pra dentro das cores da água do Titicaca :)

Pra dentro das cores da água do Titicaca 🙂

Na chegada, fomos recebidos por uma alpaca muito da simpática. O susto passou, dando lugar à celebração de mais um momento bacana.

Um sorriso na chegada...

Um sorriso na chegada…

E três (ou quatro) sorrisos como resultado de um passeio tão bacana.

E três (ou quatro) sorrisos como resultado de um passeio tão bacana.

É assim mesmo: a gente planeja saída e destino, e fica sujeito a tudo o que acontece pelo caminho. Pode dar numa baita de uma dor de cabeça, pode dar num dia como esse, onde o azul deu o tom.

Bolívia, Causos

F****.

8 de outubro de 2015

Estávamos viajando pela Bolívia, e nosso próximo deslocamento seria de La Paz para Tupiza. Obviamente comprar uma passagem de ônibus em La Paz é uma experiência bem diferente do que fazê-lo no Terminal Tietê, por exemplo: não espere guichês organizados e garantias de que aquilo que você vê na foto é o que de fato você recebe. Mas é claro que não sabíamos de nada disso.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Esqueça credibilidade. Você está em La Paz.

Então fomos até a rodoviária, comprar as tais passagens. Chegando ao guichê, um homem todo prestativo nos ofereceu um ônibus bacana, com ar condicionado e conforto. Tem banheiro? Não, mas o ônibus fará três ou quatro paradas em alguns hotéis pelo caminho. Nos parecia uma boa, e compramos nossos quatro bilhetes por preços bem cabíveis, felizes da vida.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Uma das nossas melhores fotos de viagem. Sequer imaginávamos a tragédia que estava para acontecer.

Tudo pronto para a viagem – seriam aproximadamente 10 horas de ônibus, e sairíamos no meio da noite. Assim, com bancos reclinados, dormiríamos até a manhã seguinte, quando chegaríamos a Tupiza. Colocamos as malas no bagageiro do ônibus, e ao subir a escada percebemos o tamanho do buraco em que havíamos nos metido: os ônibus bolivianos que havíamos pegado até então já não eram lá essas coisas, e esse parecia “especialmente pior”, a começar pela pintura bizarra de uma espécie de Professor Girafales Seresteiro que embelezava seu exterior. Lá dentro, apenas bolivianos, que em nada lembravam turistas – pareciam locais indo para o interior, mais ou menos como se fosse uma viagem de São Paulo a Vitória feita no ônibus mais barato – e boliviano. As pessoas não queriam pagar para despachar suas bagagens, e em pouco tempo o interior do veículo virou uma zona: mantas, malas enormes, e em alguns quilômetros, uma parada providencial para que a maioria dos passageiros comprasse cada um seu frango, feito na rua e bastante cheiroso – é bom dizer – mas imaginem um ônibus cheio de gente comendo frango.

As poltronas eram esquisitas, as janelas não fechavam direito, e obviamente não existia nenhum ar condicionado naquele pardieiro. A noite avançava, e a vontade de ir ao banheiro surgiu na minha mãe. Esperávamos a chegada ao primeiro hotel, quando o ônibus pára no meio da estrada. Um breu. Ela, apertada, desce pra ver onde rolaria o tal xixi. A Dé acompanhou a sogra, num gesto de grandeza e inconsequência. Me contou depois que os “banheiros” eram num descampado, cujos azulejos possuíam cor e tons extremamente suspeitos. As cholas que desceram do ônibus para o mesmo fim simplesmente se agachavam e levantavam um pouco as saias. Ao término, ajeitavam a roupa e voltavam pro ônibus. Não vi nada disso. Não temos fotos. Sou extremamente grato por isso, pois imagino que a experiência tenha sido algo desse tipo:

Veio a madrugada. Eu estava numa janela, minha mãe na janela oposta. Nas poltronas do corredor, a Dé e a Mel. Entrava um vento gelado pelas frestas das janelas, que não nos deixava dormir de jeito nenhum. Disseram-me que havia gente deitada no corredor, dormindo ali mesmo, e eu não duvido nem um pouco. A noite foi longa e terrível, mas assim que amanhecesse chegaríamos ao nosso destino e todo esse pesadelo acabaria. O sol surgiu, e entramos numa área de deserto. Sentia que estava acabando.

Sentia, quando o ônibus quebrou.

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

Como um ônibus com uma pintura dessas poderia dar certo?

E não quebrou pouco. Um problema no eixo, que nos estacionou no meio do nada. Esperamos do lado de fora, enquanto o motorista tentava consertar aquela desgraça. Nosso tour para Uyuni sairia de Tupiza às 14h, e os nervos estavam mais quentes que aquela areia toda. Algum/muito tempo depois, pediram para que subíssemos. O ônibus partiu, com barulho de coisa quebrando, e numa velocidade inferior a qualquer bicicleta que por um acaso se perdesse por lá.

Assim seguimos por algum tempo, até chegarmos num vilarejo completamente inexplicável: Santiago de Cotagaita. Consistia numa rua de terra, com duas ou três esquinas, uma agência da Western Union e alguns “restaurantes”, com aspas mesmo. Descemos, e o motorista levou o ônibus mais à frente para o conserto. Aparentemente um acaso comum, pois todos os outros passageiros pareciam perfeitamente conformados com a situação, e de lá resolveram almoçar naquele fim de mundo. Eu queria explodir. Não lembro quem pediu comida – se as três ou não. Sei que não comi nada, e estava espumando de raiva daquilo tudo: da promessa do cara que me vendeu, e do quanto eu havia sido otário em acreditar. Nada do ônibus ficar pronto. Era notório que havíamos perdido a saída do nosso tour, e isso só aumentava nossa dor.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Procurem Santiago de Cotagaita no Google, e coloquem em mapa/geográfico. Divirtam-se com a nossa desgraça. Se quiserem rir mais, procurem na Wikipedia: a descrição da cidade tem UMA LINHA.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à esquerda.

Cotagaita à direita.

Cotagaita à direita.

Um molequinho brincava feliz no meio daquela poeira toda. A sensação era de estarmos esquecidos no meio do nada. Não tínhamos dinheiro em espécie, e não tínhamos como conseguir uma grana naquele cafundó. Era desesperador. As horas passavam, olhávamos pro fim da rua, e nada do ônibus aparecer. Estávamos pagando nossos pecados, com juros e suor. Meu humor já tinha acabado há tempos, e eu estava absolutamente intratável.

Eu, procurando meu humor.

Eu, procurando meu humor.

Alguém feliz.

Alguém feliz.

Não sei quanto tempo levou, mas ver o ônibus voltando foi um alento.

Entramos, e ele seguiu entre primeira e segunda marchas. Uma nova quebra era iminente, mas tentávamos acreditar que apesar de tudo aquilo, conseguiríamos chegar. Na única TV ali dentro passava um VHS, com uma festa local tocando cumbia. Tentávamos descontrair, mas era difícil. Devagar e sempre, o ônibus seguiu adiante, e chegamos a Tupiza por volta das 16h (sendo que saímos de La Paz às 20h do dia anterior… sim: VINTE HORAS DE VIAGEM PELO INFERNO). Dali em diante as coisas dariam certo – mesmo dando errado, como deram.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

A paisagem pela janela do ônibus: desolação e aridez.

Já se vão 4 anos dessa via crucis, e hoje a gente lembra dessa história e dá risada. Portanto, valorize seu ar condicionado, seu banheiro limpinho, sua janela vedada, seu carro motor mil e seu sofá da sala: nunca se sabe quando seu trajeto pode te jogar em Santiago de Cotagaita.

Bolívia

Coca: a polêmica

14 de maio de 2015

Desde aquela fatídica eliminatória em 1993, quando perdemos nossa primeira partida na história da competição para a Bolívia, ouvimos falar com insistência do quanto a altitude de La Paz castiga. Em tempos de Taça Libertadores da América, tomes que apanham por 5 ou 6 gols quando jogam fora da cidade costumam vencer por lá. Atletas profissionais, com seu preparo físico indiscutível, passam mal na beirada do campo, apelando por vezes para pequenos balões de oxigênio.

Exagero? Nenhum.

La Paz (ou Nuestra Señora de La Paz) é uma cidade localizada a uma altitude de 3.640 metros acima do nível do mar: um verdadeiro desafio para o corpo humano, pois a concentração de oxigênio nesses termos é ridícula, e respirar passa a ser um desafio. Pra isso, existe um remédio local que ainda causa um mundo de curiosidade para quem não visitou a cidade: as folhas de coca. Também encontradas em outros lugares – inclusive no Perú, mais especificamente em Cusco, é um pré-requisito e uma ferramenta natural de sobrevivência. E esse texto breve é para matar algumas dúvidas a respeito dessa peculiaridade:

Você fica doidão mascando a danada?

– Não. Por sinal, não é a sensação mais agradável do mundo mastigar uma folha seca. Tem gosto de… folha seca. Apesar de estar ruminando um pedaço de mato, é comestível, suportável, e após algum tempo você se habitua.

Mas é dela mesmo que se faz a cocaína, né?

– Aham. Seu noia.

O chá você encontra à venda em quase todo lugar, mas bebe de graça em quase todo lugar também.

O chá você encontra à venda em quase todo lugar, mas bebe de graça em quase todo lugar também.

Quanto eu preciso pra altitude não me castigar?

– O consumo da folha de coca na Bolívia é extremamente natural, normal e corriqueiro. Existem cestinhas espalhadas em albergues (possivelmente em hotéis também), assim como o chá, que é encontrado em todos os cantos da cidade – para beber ou comprar os pacotinhos, por preços irrisórios. Fizemos um tour, e os guias levavam um saco cheio de folhas no carro – para consumo próprio e nosso, que foi bastante necessário. O efeito que a coca causa é a expansão dos alvéolos pulmonares, ou seja, ela aumenta a capacidade pulmonar de absorção de oxigênio, o que ajuda a equalizar o efeito de desconforto causado pela altitude.

Existe esse efeito todo mesmo? Não é frescura?

– Frescura nenhuma. A cidade de La Paz é composta de ladeiras bastante íngremes, e a geografia da cidade e arredores é montanhosa – vezes pra cima, vezes pra baixo. Seus pulmões são exigidos o tempo todo, e sob tais condições atmosféricas, a não-compensação causa falta de ar, tontura, sono e enjôo – tudo isso dependendo do quanto de esforço está sendo feito.

Ladeiras de verdade, longas e íngremes. Haja pulmão.

Ladeiras de verdade, longas e íngremes. Haja pulmão.

Os bolivianos passam mal como a gente?

– Não, pois nasceram ou viveram por muito tempo durante essas condições, e seus corpos se habituaram a tais condições. Assim como o esquimó é capaz de reconhecer muitos tons de branco devido à vida na neve, a altitude não é um problema para os habitantes de La Paz. Eles tomam chá como se fosse o nosso chá preto, e consomem folhas quando viajam para locais ainda mais altos.

Dá pra trazer o chá pro Brasil?

– Dá. Mas a gente resolveu não arriscar, pois se tem um bicho complicado de se entender é fiscal de alfândega. Macaco gordo não sobe em galho.

E não, não dá pra jogar futebol em La Paz. Apesar das criancinhas da foto me desmentirem (por motivos apontados no penúltimo ítem).

Esqueça: seu time não ganha se jogar em La Paz.

Esqueça: seu time não ganha se jogar em La Paz.

Esqueça qualquer relação com as drogas: folha de coca é legal sim, é necessária sim, e se você for pra Bolívia (e vá, porque vale a pena, logo mais a gente conta os porquês) você vai mascar sim. Seu corpo agradece, seu pulmão mais ainda.