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Uma saga chamada Roraima (4/6)

18 de fevereiro de 2016

É nosso centésimo texto! Uma alegria do tamanho do Roraima 🙂

E é também a quarta parte do nosso relato sobre o Monte Roraima. Não por acaso, o dia em que pudemos conhecê-lo lá de cima, e que além da experiência em si, significou muito mais do que isso na nossa vida. Então, sem mais delongas, à história:

Acordamos na esperança de alguma melhora em nossa situação, mas assim que abrimos a barraca o tempo úmido entregava que pouco ou quase nada havia mudado: as calças continuavam molhadas, assim como nossas botas. E com botas molhadas, como conseguir passear pelo Roraima? O terreno é totalmente irregular, composto de pedras que em certos lugares podem sim machucar seu pé. Havaianas eram impensáveis (e proibidas pelo nosso guia). Tomamos nosso café da manhã com um sentimento de derrota que poucas vezes experimentamos na vida. Nossa viagem parecia ter terminado antes da melhor parte.

Foi aí, sabe-se lá como, que veio uma ideia.

Nosso almoço do dia anterior foi um lanchinho mequetrefe, entregue pela equipe do guia NUM SAQUINHO PLÁSTICO. Bem, tínhamos meias secas. As calças eram de tecido leve, e secariam rapidamente no corpo. Se calçássemos as botas com esse saquinho nos pés, e com a meia sequinha, tínhamos uma chance de sobrevida lá em cima. Rapidamente o pessoal do grupo (que compadecia completamente do nosso desânimo) ssiu caçando os saquinhos do dia anterior. Nos trocamos, testamos, e tivemos nosso primeiro momento de alegria e esperança no topo do Roraima. Situação até então impensável, um milagre aconteceu – e voltamos ao jogo 🙂

De volta ao jogo, tínhamos um longo caminho.

De volta ao jogo, tínhamos um longo caminho.

O que se seguiu dali em diante foi um longo e tranquilo passeio durante toda a manhã. Começamos fazendo o caminho inverso ao que havíamos desesperadamente feito no final da tarde anterior, quando o temporal nos pegou e fez o que fez. Em fila, seguíamos o guia entre as depressões e desníveis das pedras no caminho. De fato, diferenciar poças d’água e rocha era uma tarefa difícil até durante o dia, pois as rochas são quase pretas, enquanto as pequenas piscinas mantém aspecto semelhante, e enfiar o pé na lama é questão de sorte (ou azar, como foi o nosso caso). Pelo caminho destacava-se também toda uma flora totalmente desconhecida, com plantas coloridas cuja principal característica era a capacidade absurda de absorção de água – dado o ecossistema único do tepui.

Um verdadeiro vale de ikebanas.

Um verdadeiro vale de ikebanas.

Mais adiante, uma área um pouco mais aberta reservava um verdadeiro tapete branco, contrastando com a rocha negra da superfície. O Vale dos Cristais é de fato tão bonito quando o nome sugere, e era necessário um cuidado especial para não prejudicar as estruturas do local. O sol dava as caras pela primeira vez.

De todos os tamanhos, os cristais que dão nome ao vale...

De todos os tamanhos, os cristais que dão nome ao vale…

...servem como um inacreditável tapete branco.

…servem como um inacreditável tapete branco.

O dia começava bem, e nossa esperança havia voltado :)

O dia começava bem, e nossa esperança havia voltado 🙂

Entre subidas e descidas, fomos conhecendo alguns vales, lagoas, depressões e formações rochosas que nos deixavam de boca aberta. Os cenários que o Roraima proporciona não são comparáveis a nada que conhecíamos até então. Foram várias as situações em que nos sentíamos pisando na Lua, sem nenhum exagero. Alguns locais levavam nomes engraçados, pelas silhuetas formadas: um sombrero, o rosto do Fidel, e outras coisas cujas imagens falam por si…

O sombrero, que veio parar na minha cabeça...

O sombrero, que veio parar na minha cabeça…

...o rosto do Fidel...

…o rosto do Fidel…

...e bem... o Ricky quis provar alguma coisa pra gente.

…e bem… o Ricky quis provar alguma coisa pra gente.

Com algumas paradinhas estratégicas, nossas roupas já estavam secas. A solução para os pés tinha funcionado, apesar de um certo calor que sentíamos por causa do saquinho entre as meias e as botas – mas dada a situação geral, estávamos num lucro monumental. O tempo havia aberto, e o frio da manhã dava lugar ao sol e um céu azul. Lembrando que estávamos sem banho já há um dia e meio, compensávamos nosso cheiro com a alegria da sobrevida no tepui – e pra falar bem a verdade, não éramos os únicos a estar naquele tipo de situação: essa higiene à qual estamos tão acostumados aqui na civilização dá lugar a um certo instinto de sobrevivência em acampamentos desse tipo. Queríamos um banho, mas queríamos ainda mais era vencer o Roraima.

As formações eram - pra dizer o mínimo - inacreditáveis.

As formações eram – pra dizer o mínimo – inacreditáveis.

Uma pausa pra descanso ao lado de uma das lagoas.

Uma pausa pra descanso ao lado de uma das lagoas.

E entre subidas e descidas, seguíamos adiante.

E entre subidas e descidas, seguíamos adiante.

Seguimos vale adentro, descendo algumas encostas e caminhando entre as depressões. As dores no meu joelho haviam aumentado, mas como eu disse, tínhamos objetivos maiores e claros nesse dia. Eis que chegamos enfim à área de borda do tepui. Um tempo maior de contemplação era necessário. Estávamos caminhando acima das nuvens, num território maravilhoso, e com uma vista privilegiada do nosso vizinho, o Kukenán. Hora da ficha cair e comemorar: havíamos enfim conquistado o Roraima, e Carl Fredricksen não estava mais sozinho.

Chegamos!

Chegamos!

E sim, é tudo de verdade.

E sim, é tudo de verdade.

A primeira imagem, só com as nuvens...

A primeira imagem, só com as nuvens…

...e a segunda, com a gente entre elas :)

…e a segunda, com a gente entre elas 🙂

Perto dali, um conjunto de pedras chamado carinhosamente de “La Ventana” desafiava os mais corajosos a uma olhada pelo vão central daquela estrutura: uma janela para baixo, com rajadas de vento absurdas e violentas. Para se aproximar, por questão de segurança só estando agachado ou deitado. Nenhum dos dois se arriscou… em compensação, a Dé insistiu em olhar pra baixo, e resolveu fazer isso do jeito dela.

La Ventana, meus amigos. Um vão para o nada, basicamente. Não encaramos.

La Ventana, meus amigos. Um vão para o nada, basicamente. Não encaramos.

Mas como eu casei com uma pateta, ganhei esse momento de presente...

Mas como eu casei com uma pateta, ganhei esse momento de presente…

...momento esse que a Mercedes deixou ainda mais evidente.

…momento esse que a Mercedes deixou ainda mais evidente.

O tempo variava rapidamente. Chuva e sol revezavam, enquanto seguíamos para a última parte do passeio da manhã (já era começo de tarde), que consistia em visitar as piscinas naturais que se formavam entre as rochas. Piscinas? Banho, certo? Errado… pois nós (e outros oito do grupo) esquecemos toalhas e sabão de côco nas barracas. Quem não esqueceu foi o grupo de neozelandezes, que se divertiu enquanto a gente se lamentava pela falta de ideia – e por nosso cheirinho nada agradável. Os caras definitivamente sabiam o que estavam fazendo.

As belíssimas e convidativas piscinas naturais...

As belíssimas e convidativas piscinas naturais…

...que só os neozelandeses usaram :(

…que só os neozelandeses usaram 🙁

Depois do banho deles, voltamos ao “hotel”. Almoçamos por lá com calma e tranquilidade. O Ricky – nosso guia – alertou que um dos carregadores acompanharia quem quisesse em um passeio durante a tarde na rocha que ficava logo em frente ao hotel, enquanto ele ficaria descansando. Resolvi fazer o mesmo – pelo bem do meu joelho, e por saber que o dia seguinte seria o mais difícil dessa nossa epopeia. Eu precisava me recuperar um pouco, ou o quinto dia seria ainda mais dramático. A Dé seguiu com o grupo para a pedra, enquanto eu fiquei conversando com o Ricky e com o canadense, que também ficou por lá. Foi algo divertido e bem inesperado: tive que desdobrar meu inglês macarrônico na conversa com ambos, e aos poucos fui me sentindo mais à vontade com essa nova necessidade. Tomamos um chá – estava esfriando bastante – e assim que o grupo voltou, jantamos enquanto a luz natural ia embora.

Nosso hotel, visto da pedra que ficava logo em frente.

Nosso hotel, visto da pedra que ficava logo em frente.

A Dé também saiu na foto, numa outra versão, enquanto eu estava me recuperando lá embaixo :)

A Dé também saiu na foto, numa outra versão, enquanto eu estava me recuperando lá embaixo 🙂

Um dia que começou com ares de tragédia terminou assim...

Um dia que começou com ares de tragédia terminou assim…

...e nós, logicamente, agradecemos aos céus por isso :)

…e nós, logicamente, agradecemos aos céus por isso 🙂

Nossos pés sobreviveram. O plano deu certo, e o calor dos pés acabou secando internamente as botas. Claro que a pele dos pés sofreu com isso, e nós que já estávamos razoavelmente machucados ganhamos novas feridas. A Dé sofria com bolhas e mais bolhas, enquanto minha preocupação maior ainda era o raio do joelho, que havia sido forçado o dia todo entre subidas e descidas. Mas a sensação de vitória superava tudo isso. Havíamos caminhado, conhecido e vivido o Roraima lá de cima, e sem dúvida era o melhor dos quatro dias até então.

Fomos dormir mais do que satisfeitos, e rezando para que o dia seguinte fosse bom. Mas nada havia nos preparado para o que estava por vir.

Brasil, Perrengues, Venezuela

Eu e o Roraima, o Roraima e eu

2 de fevereiro de 2015

A viagem que fizemos para o Monte Roraima não foi a melhor, nem a mais divertida, mas com certeza foi a mais marcante.

Durante as minhas pesquisas, acho milhares de lugares que vão entrando na lista de lugares que quero conhecer. A chance de conhecer alguns desses lugares, mesmo estando lá, é mínima. Talvez pela distância, por serem de difícil acesso, ou então por ser um lugar mais caro… mas nada disso diminui minha vontade de realmente conhecê-los.

O Monte Roraima era uma dessas viagens. Da primeira vez que li a respeito já pensei em fazer essa loucura, mas depois acabei deixando a ideia um pouco de lado: é uma viagem difícil, requer um preparo físico que nós definitivamente não temos e (convenhamos, gordinhos que somos) não teríamos num futuro muito próximo.

Você não é nada perto do Roraima.

Você não é nada perto do Roraima.

Aí lançaram UP… e eu, sendo essa pessoa completamente influenciável, me pus a pensar no Roraima de novo. O filme é maravilhoso, mas o que realmente me impressionou foi a parte do DVD que mostra a viagem que os desenhistas fizeram pra lá, pra conhecer e criar o universo do filme com mais propriedade.

Sempre vemos fotos do Roraima e principalmente do topo. Claro, as fotos são incríveis… mas fotos são fotos, e aquele documentário mostrou um mundo simplesmente diferente de qualquer outro lugar que eu já tenha visto.

Bom, desconsiderei o fato de que os desenhistas foram até uma parte do caminho de helicóptero, resolvi não esquentar a cabeça com detalhes bobos como “preparo físico”. Usei todo meu poder de persuasão para convencer o Masili, e decidi que sim: subiríamos o Roraima. Vale dizer que nossas duas únicas experiências anteriores com trekking haviam sido: uma mini-trilha, e outra mais longa e relativamente fácil – ambas na Patagônia. Mas isso foi só mais um detalhe que eu resolvi ignorar. Então lá fomos nós, ingenuamente ansiosos.

Essa parrede é 3 vezes maior do que parece na foto.

Essa parede é 3 vezes maior do que parece na foto.

Fechamos a nossa ida ao Roraima com a Backpacker-Tours, e no dia anterior à subida tivemos uma reunião com o guia, que serviu basicamente para nos dar alguns avisos importantes, como “quanto custa um resgate de helicóptero”, ou ainda um breve relato do trecho mais difícil e perigoso da descida, o funcionamento geral da viagem, logística, etc. Saímos de lá com um “medo saudável”, aquele medinho controlável que te impulsiona rumo a uma nova aventura, ao desconhecido, mas que deixa sempre uma pulguinha atrás da orelha…

Os próximos 6 dias foram extremos em relação ao esforço físico. Senti músculos da cintura pra baixo que eu nunca imaginei ter. Andei mais durante aqueles dias do que ando normalmente durante um ou dois meses. Durante a noite, dormíamos em uma barraca – uma mesma barraca por 5 noites, diária e estrategicamente montada em cima de pedrinhas (que durante a noite pareciam verdadeiros pedregulhos). A descida da volta me proporcionou bolhas no pé que eu nunca desejarei ao meu pior inimigo. A experiência toda deveria ter sido detestável, mas não foi. Muito pelo contrário, foi emocionante. O Masili demorou alguns meses para começar a ter carinho pela viagem, mas mesmo com dores e pensando que eu realmente havia dado um passo maior que a perna, achei aquilo tudo maravilhoso.

O único lugar onde você é recebido por uma tartaruga de pedra...

O único lugar onde você é recebido por uma tartaruga de pedra…

...por um sapinho minúsculo que não pula...

…por um sapinho minúsculo que não pula…

...e é cercado por pedras que não fazem o menor sentido.

…e é cercado por pedras que não fazem o menor sentido.

Confesso que passar por essa provação toda fez com que eu me sentisse muito bem comigo mesma – quase uma vencedora, mesmo sendo sempre a última a chegar no nosso grupo, a mais devagar, e a que notoriamente estava mais cansada. Mas diferente da maioria das pessoas que nos acompanhou, eu não fui por causa do trekking: meu objetivo lá era muito claro. Eu queria chegar no topo, queria estar dentro daquele mundo tão diferente e tão bonito que eu tinha visto por fotos e pelo documentário, queria ver de perto aquelas rochas em formatos bizarros, encontrar algumas plantas que só crescem ali, conhecer o sapinho minúsculo preto que não pula, presenciar o clima instável, ficar no meio das nuvenzinhas passando frio pra logo depois sentir calor, ver o mundo de cima daquele monte sem cume.

Cheguei lá. Sem casa, cachorro, nem amiguinho escoteiro.

Cheguei lá. Sem casa, cachorro, balão colorido ou amiguinho escoteiro.

Apesar do sofrimento, de todas as dores, e até um mergulho acidental em uma piscina de lodo, eu consegui exatamente o que queria ao subir o Roraima: me senti em outro planeta andando pelo topo, numa paisagem inigualável. Aliás, meu sucesso foi tão grande que estou pensando seriamente em desconsiderar detalhes bobos como todos os perrengues que passamos e começar a sonhar com, talvez… o Kilimanjaro!