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Sukiennice

Polônia

Meu caso de amor
com um corneteiro polonês

12 de março de 2015

Por Juliana Eliezer


Cracóvia, ao que parece, não é um destino popular entre brasileiros. Digo isso sem preconceito algum, e não sei explicar por que. Segundo minhas impressões, se você não passa por Varsóvia, fica mais difícil chegar e sair da antiga capital polonesa. De Praga, tomei um trem até a fronteira e, a partir de lá, uma van, conduzida por estradas surpreendentemente conservadas e bem sinalizadas, e que me deixou no meu hotel pouco depois das onze e meia de uma noite gelada do final de outubro.

Sou ansiosa, não gosto de esperar: depois do banho e de vestir roupas limpas, desci os degraus desbeiçados do meu hotel, que ficava num prédio de apartamentos tão velho que parecia que iria cair na minha cabeça a qualquer momento, mas que estava na cara do gol para se acessar Stare Miasto, a cidade velha, e meti as caras, acreditando nos relatos dos viajantes que diziam ser Cracóvia super segura para turistas estreantes.

Minutos depois, meu primeiro contato com Rynek Glowny, a maior praça medieval da Europa, envolta numa camada de névoa espessa, que tornava fantasmagórica a iluminação do prédio que eles chamam de Sukiennice, e eu chamarei de mercado central.

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Parentesis: nem se preocupem com a pronúncia desses nomes todos… para vocês terem uma ideia, Cracóvia em polonês se escreve Kraków e se pronuncia “crrrácúfff”, ou algo assim… inútil, portanto, a preocupação com tais preciosismos. Fecha parentesis.

Rynek Glowny levou exatos três segundos para roubar meu coração. Gigantesca, cheia de detalhes e de contrastes – uma igreja do século 10 a poucos passos de um Hard Rock Cafe – estava ali ela, quase envelopada na bruma, de um jeito que fazia com que eu tivesse a impressão que podia pegar o ar com os meus dedos. Quase não havia luzes acesas nas casas que a ladeavam, restaurantes e hoteis em sua maioria, emprestando à praça um curioso aspecto fantasmagórico e nada assustador ao mesmo tempo. Acreditem vocês também: é seguro de fato, mesmo à meia noite e meia de um dia de semana. O máximo que pode acontecer é o turista ser abordado por um dos montes de promotores que entregam panfletos dos bares e restaurantes nas imediações, ou mesmo pelo Freddy Krueger que anda por ali fazendo propaganda da Lost Souls Alley, atração de terror que fica logo ali, na Ulica Florianska.

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Dadas as muitas horas de viagem que eu carregava no lombo naquele momento, somadas à fome que eu estava, meu primeiro exame de Rynek Glowny foi um pouco precário, consistindo apenas em uma volta e meia, para depois tomar o caminho do McDonald’s mais próximo (só porque eu ainda não conhecia o restaurante 24 horas que só vende pierogis, os maravilhosos dumplings recheados que provavelmente são a melhor coisa que já comi na vida). Na volta, apenas uma pequena olhada, dessa vez mais de perto, no prédio do Mercado, que descansava ali no meio do largo. Faltavam dois minutos para a uma da manhã, e eu precisava de sono, muito sono.

Ao caminhar em direção ao hotel, por uma das saídas da praça – aquela que passa pela lateral da Bazylika Mariacka, ou Basílica de Santa Maria, famosa pela assimetria de suas duas torres frontais. Andava com meus passinhos rápidos de garota baixinha, quando me vi subitamente detida: o que eu estava ouvindo era um toque de clarim, ou de algum instrumento de sopro que se assemelhasse.

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A música continuou, sem que eu conseguisse identificar de onde vinha. Aliás, ela parecia mudar de lugar conforme se desenvolvia. Fiquei ali parada, olhando para os lados, para cima, para baixo, perdida, meio atordoada. Os toques eram altos, tinham um quê de lamento e pareciam vir de todo canto. Estática, na lateral semi vazia da praça, com a névoa granulando a noite e aquele som misterioso, acho que senti-me numa cena de filme impressionista.

De repente, parou. Sim, a música parou, como se tivesse ficado pela metade. Como se alguém tivesse puxado a vitrola da tomada. Hoje, me arrependo de não ter tirado uma selfie da minha cara de ponto de interrogação (só vim a conhecer o pau de selfie muitos dias mais tarde, em Roma). O que tinha sido aquilo? “Toca mais“, quase gritei, rindo sozinha da minha vontade boba de mandar o corneteiro misterioso tocar Raul. Uns minutos depois, quando me convenci de que ninguém retomaria a música de onde ela havia parado, voltei para o hotel, prometendo a mim mesma que me seguraria para não googlar o incidente, e ver se no tour guiado do dia seguinte eu descobriria alguma coisa.

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Vejam só, essa viagem me tornou uma viciada em tours guiados, tanto aqueles previamente pagos quanto os outros, nos quais você oferece ao guia o tanto de grana que achar que o tour valeu. O de Cracóvia pertencia a este último tipo, e tive a sorte de ser ciceroneada por um rapaz chamado Tomek, que além de falar inglês muito melhor que eu, sabia tudo sobre todas as histórias bizarras, curiosas e lindas da Stare Miasto. E foi por ele que fiquei sabendo qual era a do corneteiro misterioso…

Depois de darmos uma volta pela Cidade Velha, Tomek levou o grupo para a frente da Basílica, às duas horas da tarde, em ponto. Mandou que todo mundo olhasse pra cima, em direção à torre mais alta. Obedecemos. Uns instantes depois, vemos uma janela se abrir, lá em cima, num ponto muito alto para que se tirasse uma foto que prestasse sem o uso de teleobjetiva. Usando meus pobres óculos, contudo, consegui ver o clarim sendo posto para o lado de fora da janela, e então ouvi o som que se seguiu. Era a mesma música lúgubre da noite anterior, e o corneteiro revezava as janelas, se locomovendo pelo lado de dentro da torre. Ate que, no mesmíssimo ponto, parou. Colocou a mão para fora, acenou e fechou a janela na nossa cara. Fim do mistério.

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Tomek contou que, lá pelos idos de mil, duzentos e alguma coisa, o sentinela que tomava conta da cidade avistou, ao longe, uma cambada de invasores tártaros, que ao que parece planejavam tomar Cracóvia. Acordou todo mundo bem na hora H com o toque do seu instrumento, e a cidade conseguiu se livrar dos inimigos. Tristemente, o corneteiro-heroi não viveu para comemorar a vitória: enquanto tocava, foi atingido por uma flecha bem no pescoço, parando a música pelo meio. E aí que, de hora em hora, hoje, após as badaladas do campanário da Basílica, um funcionário público faz as vezes de corneteiro-heroi, reproduzindo a canção até o momento em que ela foi interrompida. Ou assim diz a lenda. É ou não é para se apaixonar?

Cidades importantes são cheias de crônicas e contos próprios. São verdadeiros repositórios. Em Cracóvia, o real se mistura ao imaginário, o sublime ao sangrento, o real ao popular, num caldeirão fumegante (fui falar de caldeirão, lembrei de novo dos pierogis) que encanta qualquer um. Tem corneteiro, tem dragão, tem papa. Tem rei, tem igreja de torres diferentes. Tem amor, tem guerra. Essa que contei foi apenas uma das histórias que tornou Cracóvia o meu destino favorito na Europa, até agora. Todas as outras são, porém, igualmente apaixonantes, e a gente pode aprender indo lá e escutando-as de um guia, ou sonhando que está lá e digitando alguns caracteres no Google. Recomendo a primeira maneira, para fazer asap, assim que a oportunidade surgir. Sim, acho que posso dizer, com segurança e por promíscuo que pareça, que meu caso de amor não foi só com o corneteiro-heroi, mas sim com toda a Cracóvia.


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