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Stalin

Hungria

Terror Háza

8 de junho de 2015

Você está passeando em uma das principais avenidas de Budapeste, quando de longe avista um edifício que se destaca naturalmente. Está em uma esquina. Sua arquitetura é muito bonita e bem preservada (assim como a grande maioria dos prédios da cidade). Porém, o diferencial está lá em cima: uma espécie de letreiro em negativo, que funciona quase como cobertura, e ao mesmo tempo projeta em letras agressivas aquilo que define sua história: TERROR. Estamos falando de Terror Háza, cuja tradução literal é “casa do terror“.

Obviamente, não é um museu comum. É um prédio com mais de 130 anos que serviu como sede da polícia secreta soviética, durante os tempos de ocupação húngara, logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa ocupação durou aproximadamente 40 anos, terminando somente em 1990. Pra quem está de fora e chega em Budapeste, é uma verdadeira overdose de informações aquilo que a cidade oferece em diversos pontos, que misturam o passeio ao ar livre a verdadeiros memoriais. Pode parecer algo pesado, ou “forçado” para nós, que não vivemos esse período (dessa maneira, tivemos nossa ditadura, e todo período de repressão e censura deve ser levado muito a sério), mas é algo natural para os húngaros. O país possui uma história riquíssima e extremamente dolorosa, que permanece viva e aflorada em seu povo. Terror Háza possui três andares e um subsolo que reafirmam essa máxima. Budapeste foi totalmente destruída durante a Segunda Guerra, e sua reconstrução (bem como a de todo o país) mostra a força de todo um povo. Ainda do lado de fora do prédio, um enorme cordão de pequenas fotos de vítimas do regime deixa isso mais evidente.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Um memorial nas paredes externas de Terror Háza, que vai muito além de decoração.

Logo na entrada do prédio – assim como em sua moldura externa, os dois símbolos principais do regime: as setas, do Partido das Setas Cruzadas (Nyilaskeresztes Párt-Hungarista Mozgalom), que nada mais era do que o partido nazista húngaro, organização fascista que também tinha como alvo os judeus; e a estrela, do ÁVH (Államvédelmi Hatóság), a polícia secreta húngara. Ainda no térreo, um enorme tanque de guerra em cima de uma piscina de óleo, rodeado de fotos de prisioneiros do prédio deixa claro que o passeio não será para estômagos fracos.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

Os totens com os símbolos, as imagens do tanque e fotos, e as escadarias.

O tour é feito de cima para baixo, começando portanto pelo último andar. Após a transformação do prédio em museu, as salas foram transformadas em sessões históricas, que narram cronologicamente o período de dominação do país pelas organizações fascistas e comunistas citadas logo acima. Existe todo um aparato áudio-visual que transforma cada setor em uma experiência intensa – por vezes claustrofóbica, outras de esperança, empatia, de dor e sofrimento, e num conjunto geral algo que você acaba levando debaixo da pela quando sai dali.

A primeira sala mostra como a Hungria teve seu território fragmentado, ocupado, desocupado e reagregado por uma dezena de vezes. Essa história divide espaço com filmes da época, que mostram a ocupação nazista antes da chegada dos soviéticos. Telefones nas paredes transmitem mensagens de rádio daquele período, dependendo do número que você escolha discar. Um enorme carro preto dá a impressão que vai te sequestrar assim que as luzes se apagam e o som abafa.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

Imagens do carro, propagandas de época, e de uma sala com fotos das lideranças do partido.

O passeio segue, por corredores de letras metálicas, que levam a uma sala de reunião onde estão expostos na parede os uniformes dos oficiais do exército e do serviço secreto. Novamente, telefones trazem pronunciamentos e gravações da época (todos em húngaro). Dali adiante existe uma espécie de vestiário, onde dois manequins com uniformes giram ao centro. Na sala ao lado, pequenas mesas de interrogatório.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

O corredor, as salas de reunião e interrogatório, e o vestiário.

Uma sala ampla, com um enorme mapa impresso no carpete, guarda em cones metálicos invertidos alguns ítens carregados por soldados, sobreviventes e prisioneiros durante o período. Nas paredes, esses mesmos personagens e suas famílias se revezam contando suas histórias. Sem a menor dúvida, uma das instalações mais densas e dramáticas do museu.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

A sala com o mapa acarpetado, e em destaque, alguns objetos.

Pouco adiante, cabines com propagandas políticas da época, escondidas sob cortinas vermelhas e imagens de Stalin. O discurso, todos sabemos, é sobre a excelência do poder, e “seu reflexo no bem-estar da população”. Na mesma sala, uma verdadeira parafernália mostra o quão complexa era a ação de espionagem naquela época. Novamente, telefones e pequenos aparelhos de áudio trazem mensagens gravadas. A seguir, uma pequena sala, com bens de Stalin e de alguns membros do seu partido.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

As cabines com propaganda política, e o aparato de espionagem.

Em outro espaço, uma especie de labritinto feito com tijolos de sabão faz com que o visitante se perca numa imensidão branca, terminando seu passeio em uma cela. Próximo dali, uma instalação com diversos utensílios, que mais parece uma cozinha gigante prateada, expõe todo o tipo de produção operária feita pelos prisioneiros – de marmitas a panelas, de ferramentas a objetos decorativos.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

A cela, uma sala do partido, e objetos produzidos pelos prisioneiros.

Uma espécie de auditório, montado com folhas de jornal do chão ao teto, faz alusão à censura da época, com uma sala secreta repleta de escutas escondida na parede direita. Seguindo dali, damos numa espécie de galpão, com uma enorme cruz luminosa no chão. Nas paredes, objetos sacros e vestimentas de bispos, escancarando o comprometimento religioso ao regime da época.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

Duas das salas mais impressionantes, sobre censura e religião.

O passeio termina no subterrâneo do prédio, onde estão as áreas de maior impacto. Um enorme memorial, de luzes vermelhas e cruzes metálicas representa um pequeno número dos milhares de mortos naquele lugar. Diversas armas estão expostas perto dali, e a baixa iluminação te aproxima ainda mais dessa sensação de agonia.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

O clima pesa de vez no memorial às vítimas.

Perto dali, alguns televisores contam histórias de pessoas que perderam familiares naquele local. Uma bicileta exposta, roupas penduradas, objetos de operários e um enorme carrinho repleto de pedras ilustram essas histórias (todas em húngaro, com legendas em inglês). E eu confesso que saí dali chorando.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Apesar da iluminação bonita, um dos locais mais tristes do museu.

Num último corredor, o acesso às celas e solitárias de quem teve sua vida sentenciada em Terror Háza. Não há nenhum aparato de som, sendo as instalações fiéis ao que eram na época: cubículos cercados, alguns com uma espécie de cama ou colchão, salas de tortura e até mesmo uma forca. Algumas televisões em determinados pontos mostram esses mesmos lugares no momento em que foram encontrados – seu estado de podridão e desumanidade. É chocante.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

A área prisional e de tortura, exatamente como era.

Terror Háza é uma visita obrigatória em Budapeste. Reserve uma manhã, faça uma refeição leve e prepare o coração. Não há glamour nem diversão num passeio tão intenso, mas o que se leva dali é muito mais do que um souvenir (que sim, existe – eu inclusive tenho um aqui, na minha mesa): a gente aprende muito sobre o ser humano, e o quanto ele é capaz de ir do mais baixo ao mais grandioso. E nenhum livro de História é capaz de botar essas lições na sua cabeça com tanta ênfase quanto um sobrevivente desse período maldito na história da humanidade.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Assim como a ferrugem, uma visita que fica pra sempre.

Fotos no interior do museu são proibidas. Por isso mesmo quase todas as fotos deste texto foram retiradas do site oficial de Terror Háza. Apesar disso, você encontra mais fotos de lá numa rápida busca pelo Google. É que a gente também faz apologia ao turismo respeitoso – e não ao sem-noção. Porém, encontramos uma galeria de panorâmicas (autorizada e bonitinha) que permite um passeio lá dentro, e dá pra ver alguns desses ambientes bem de pertinho. Acesse aí: http://www.panoramablog.eu/media/budapest/terrorhaza/terrorhaza.html

Romênia

Nicolae

16 de março de 2015

Uma coisa que fica muito clara quando se visita o Leste Europeu: esqueça a imagem do comunismo vendida em Hollywood durante o período da Guerra Fria (anos 80, principalmente). Afinal de contas, foram os soviéticos (e não os americanos) que libertaram diversos países ao final da Segunda Guerra. De certa forma, foram eles os heróis da libertação desses povos do domínio nazista. O que foi feito dali em diante varia muito de país pra país* – alguns foram de fato oprimidos, outros saqueados, outros ainda agregados. E a vida seguiu, de um jeito que a gente não faz ideia – e por isso mesmo, é muito difícil de dizer se bem ou mal.

Um dos fragmentos daquilo que aprendemos se deu na Romênia. Mais especificamente, num dia de tour que fizemos, acompanhados de uma guia muito simpática (chamada Radica, ou Radika – fonema confirmado, grafia infelizmente não), mas que arranhava entre diversos idiomas o nosso Português: “Por causa das novelas“, ela me disse com uma fluidez tímida em nossa língua. Estávamos no ônibus, o passeio teria mais de duas horas, e fomos os últimos turistas recolhidos para o passeio. Pouco antes de seguirmos rumo a Brașov, fizemos um tour por Bucareste, onde nos foi pincelada muito resumidamente a secular história da Romênia. Logo de início, a pergunta básica feita a qualquer grupo de turistas:

– Qual é a primeira coisa que vem à cabeça quando vocês pensam “Romênia”?

E cada um pôde responder. Somente duas respostas eram ditas:

– Drácula/Vlad Tepes, e Transilvânia.

Até a pergunta chegar ao alien aqui, que respondeu:

– Ceaușescu.

Mais dois caras citaram isso depois, e mais adiante nossa guia contou uma breve história sobre Nicolae Ceaușescu. Minha resposta não foi em vão, pois de fato ele (ao lado de Gorbachev) faziam parte da minha pífia educação política enquanto criança. Era um nome diferente, vivia aparecendo na TV, na Veja, eu adorava a cobertura em preto e branco – mas cheia de sangue, que eu criança ainda não entendia de onde saía, mas era muito mais real do que o que eu via em cores nos filmes do Rambo. Assim como real também era aquela imagem desse senhor após seu fuzilamento, morto ao lado de sua esposa. Ficou na minha cabeça, e nunca mais saiu. Vieram Gheorghe Hagi, e Nadia Comăneci em relatos olímpicos, mas Nicolae era protagonista da minha “imagem romena padrão”. Passaram-se alguns minutos até que o assunto chegasse ao seu período de governo.

A enorme e lindíssima Bucareste.

A enorme e lindíssima Bucareste.

E da boca de uma romena pudemos ouvir um pouco sobre a história desse senhor. Sem desvios de imprensa, sem tradução simultânea:

Filiou-se ao Partido Comunista com o fim da Segunda Guerra Mundial. Gradativamente foi alçando cargos mais elevados, até se tornar presidente durante os anos 70. Baseado no modelo de governo da Coreia do Norte (Juche) e na Revolução Cultural Chinesa, tornou-se um líder totalitarista, e afastou a Romênia do bloco do leste, isolando-a da política comunitária proposta no Pacto de Varsóvia. A Securitate (polícia secreta romena) agia desde a década de 40, e multiplicou sua ação durante os anos de Ceaușescu. Povoados foram destruídos, assim como um quinto da Capital – uma área histórica, “que seria reconstruída segundo a vontade de Nicolae”.

A megalomania de Ceaușescu resume-se figurativamente no Parlamento de Bucareste (Palatul Parlamentului). Segundo maior edifício vertical do mundo (perde somente para o Pentágono), teve suas obras iniciadas em 1984 por uma arquiteta romena, sendo que até hoje não foi concluído – por sua extensão absurda, seus materiais caríssimos, entre outros motivos. Um monumento incompatível à situação miserável romena, erguido sobre uma colina (Colina Spirii), no lugar de 30 mil residências, e de diversas igrejas, das mais diversas religiões. O Parlamento era a tradução do culto à personalidade e da corrupção – duas marcas latentes de seu governo.

Após um confronto entre militares e manifestantes que iam contra o regime opressor de Ceaușescu, forças armadas e população alinharam-se. O ditador fugiu, mas foi capturado, julgado e morto.

Cenário esse que muitos sonham hoje em dia no Brasil.

O Parlamento Romeno: um edifício equivalente à megalomania de seu mentor.

O Parlamento Romeno: um edifício equivalente à megalomania de seu mentor.

Imponente, opressor e lindo.

Imponente, opressor e lindo.

Uma foto possível em um país democrático.

Uma foto turística, possível somente em um país agora democrático.

Se ainda hoje houvesse um líder semelhante a Ceaușescu governando a Romênia, essas fotos acima não seriam possíveis; não teríamos caminhado e aproveitado a beleza da cidade, do Parlamento (que hoje em dia funciona abrigando alguns órgãos de governo, além de um museu), das ruas, feirinhas e parques belíssimos, que merecerão outros futuros textos em nosso site.

Radica – ou Radika – contou algumas de suas histórias pessoais; de como as distâncias entre campo e cidade ainda hoje são grandes pelos desdobramentos do governo de Nicolae; de como a economia – mesmo após duas décadas de sua morte – ainda sofre para acompanhar o bloco. Se alegra em contar que hoje pode conversar com outras pessoas, estudar outros idiomas, trocar experiências… enfim, aprender e ensinar. Hoje Radica – ou Radika – pode viver em paz.


Nicolae Ceaușescu era um ditador. Como Hitler, Stalin e Kim Il-sung. Enquanto esteve no poder, minorias religiosas e étnicas foram dizimadas. Não havia liberdade de expressão. A censura era severa, atingia a imprensa, a população, e a polícia secreta eliminava ou desaparecia com os que se opunham ao regime. Pessoas eram vigiadas em todos os lugares, o tempo todo, e delatadas anonimamente.

Ditador é o principal comandante de um processo de ditadura. Ditadura é uma coisa que muitas pessoas querem hoje para o Brasil**. Durante a ditadura, viajar, conhecer, aprender e disseminar conhecimento são atividades proibidas ou fiscalizadas. O Faniquito não existe em  uma ditadura, pois “ter um faniquito” é uma atividade ilegal nesse tipo de regime. Por essa razão, entre outras tantas – em que basta tão somente a informação, um pouco de estudo, curiosidade, e nenhum passaporte, dinheiro gasto ou milhas acumuladas – que somos totalmente CONTRA qualquer posicionamento pró-ditadura ou golpe militar, sob qualquer circunstância. Vivemos – eu e a Dé – os últimos minutos desse regime, e dele quase não lembramos. Certas coisas – o poder pelas armas, a opressão, o racismo, a xenofobia, o extremismo religioso, a intolerância, o fanatismo, entre tantos outros males que notória e historicamente não são justificáveis sob nenhum aspecto. Nunca foram. E nunca serão.


*Sabemos que a dominação de um país durante determinados períodos históricos resulta na imediata exploração de seu povo, seus recursos e facilidades. Antes de botarmos o dedo na cara dos soviéticos, vale lembrar o que aconteceu com os nativos do NOSSO país quando da chegada dos então “conquistadores”, pra onde foram nossos recursos, entre outras semelhanças históricas. E ainda hoje “comemoramos essa descoberta”.

**Sugerimos esse rápido “exercício de sobrevivência a um regime ditatorial”, somente para confirmar as tantas e pesadas linhas de hoje. E interamos: não existe ditadura “mais” ou “menos” branda: qualquer coisa capaz de causar a morte, o sofrimento ou o trauma a uma única pessoa já vai contra nossa natureza, e merece todo o desprezo possível:  http://super.abril.com.br/jogo-ditadura-militar/