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Macarrão

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (5/6)

22 de março de 2016

Acordamos cedo, de verdade. Não sei que horas eram, mas ao abrir a barraca não existia Monte Roraima. Tudo era névoa, e a sensação é que estávamos (e devíamos estar mesmo) no meio de uma nuvem espessa. Não era um bom sinal, pois a descida era perigosa mesmo em condições climáticas ideais. Aquele clima multiplicava o perigo. Fechamos a tela e começamos a nos trocar. Dez minutos depois, abrimos novamente e… nem sinal de névoa. Mesmo escuro, o céu estava aberto. Não há meteorologista que consiga decifrar o que acontece lá em cima…

O café da manhã consistia num mingau HOR-RO-RO-SO, e uma maçã. Nosso guia disse que era o desjejum ideal, e por isso encaramos até onde nosso estômago aguentou. Passamos para a maçã em seguida (pra tirar aquele gosto de papa da boca), e de barriga cheia arrumamos nossas coisas. Antes da descida, o Ricky reúne o grupo e pede para que todos oremos por um retorno em segurança. Definitivamente o papo sobre os perigos daquela manhã era bem sério. Seguimos.

O caminho era exatamente o mesmo de dois dias antes, no sentido inverso, com o agravante de somar a quilometragem do segundo dia, para que chegássemos à primeira base – aquele em que dormimos no primeiro dia. No total, eram 17 quilômetros pelo caminho, sendo 4 pra baixo e 13 pra frente. Pra animar, um visual inspirador antes da descida.

Era só descer. Simples, não?

Era só descer. Simples, não?

O primeiro trecho era justamente o Paso De Las Lágrimas, agora pra baixo. Pedras molhadas, um cuidado desgraçado, por muitas vezes encaixamos o corpo e fomos descendo quase de bunda. O grupo vinha unido, e com ordens expressas de não parar para fotografias naquele local sob hipótese alguma (o que explica um pouco a falta de imagens desse texto). No meio da descida, o celular da Dé dispara um alarme que ela esqueceu de desligar. Sem poder parar, seguimos com o alarme tocando por uns 20 minutos até a primeira parada. Uma cena que de tão ridícula foi engraçada demais.

Vencida essa etapa, agora “era só descer”. Parece fácil falando assim, mas não demorou para entendermos o porquê daquele dia ser justamente o mais difícil. Os obstáculos não eram tão grandes logo de cara, mas eram constantes. Já era nosso quinto dia, e não tardou para os músculos das pernas começarem a cansar. Descíamos lentamente (o grupo novamente desgarrou), e aos poucos os joelhos foram ficando bambos. Um pouco depois e já tínhamos que usar os braços para apoiar o corpo. A descida ficava mais íngreme, pois havíamos ultrapassado o paredão e entrávamos no trecho que levava até o segundo acampamento, e a trilha ficava definitivamente vertical. Os braços cansaram, e passamos a descer de bunda, literalmente. Nosso ritmo era cada vez mais lento, e a manhã ganhava ares dramáticos, quando finalmente chegamos.

A primeira parte tinha ficado pra trás. Ou pra cima.

A primeira parte tinha ficado pra trás. Ou pra cima.

Ao lado, a cachoeira do Kukenán lá longe.

Ao lado, a cachoeira do Kukenán lá longe.

Nisso todo o grupo já estava descansando e pronto para almoçar. Não tínhamos ideia de que horas eram. Ainda estávamos sem banho (naquele momento já eram dois dias desse martírio). Jogamos as mochilas no chão, pegamos um prato e comemos o que conseguimos, pouco antes de desabar no chão. Não se passaram dez minutos até ouvirmos o chamado do guia: “Vamos embora?”

Pegamos as mochilas e saímos antes de todo mundo, já sabendo que seríamos ultrapassados nos minutos seguintes – o que obviamente aconteceu. Com o passar do tempo, nos vimos (quase) isolados novamente (pois tínhamos a companhia do Christoph, um dos dois alemães do grupo, e que estava tão cansado quanto a gente), seguindo uma trilha que parecia ser a correta. Esse “parecer” começou a nos preocupar quando passamos a ter uma visão mais ampla do horizonte, confirmando que de fato não havia ninguém por perto. Acho que estávamos cansados demais para entrar em pânico, e seguimos adiante, confiando que chegaríamos ao nosso destino. O tempo se arrastava, e a impressão era de estarmos caminhando há horas. Meu maior medo era que chegássemos sem luz natural ao primeiro acampamento, e não pudéssemos tomar banho por mais um dia – coisa que já não dava mais pra tolerar.

Treze quilômetros de uma trilha não tão confiável (mais pra frente).

Treze quilômetros de uma trilha não tão confiável (mais pra frente).

Quando tudo parecia desgraçado, vimos alguém mais à frente. O coração acelerou. Era um dos guias, nos esperando para atravessar o primeiro dos dois rios que precisávamos cruzar. Não estávamos longe! Mas as pernas estavam esgotadas, e nosso medo de cair era gigante. Com todo o cuidado do mundo e com muta ajuda dele, atravessamos um a um até a outra margem. O Christoph resolveu ficar por ali mais um pouco para descansar, enquanto eu e a Dé seguimos desesperadamente para o primeiro rio. Queríamos chegar. Queríamos tomar banho. O ânimo ganhou sobrevida, e mesmo em frangalhos nos apressamos. O Ricky nos esperava no primeiro rio, e da boca dele veio nosso maior presente:

– Ricky! Que horas são?!?!?
– São 13h40.

SIM, ERA COMEÇO DA TARDE – AINDA!

A impressão era de fim de tarde, tal o nosso cansaço. Com a ajuda dele, atravessamos trôpegos e seguimos de meias encharcadas até o acampamento, que ficava pouco acima. Com exceção do Christoph e do canadense – que faziam parte do grupo, éramos novamente os últimos. Porém dessa vez, nada de mau humor. O grupo nos recebeu com uma alegria absurda, e a tarde era ensolarada e linda! Foi emocionante demais chegar ali, seguir até nossa barraca, arrancar a roupa e correr em direção ao rio!

Tomamos um banho que levou umas duas ou três horas, eu não sei precisar. Foi sem a menor sombra de dúvida – e debaixo de um sol delicioso – o melhor banho das nossas vidas.

Cheirosos, dignos e LIMPOS, voltamos ao acampamento. A Dé foi tirar um cochilo, eu fiquei com o grupo. Passamos a tarde conversando, ganhamos um queijinho (!) dos guias enquanto eles preparavam o jantar. O clima era leve, e não havia ser humano triste naquele lugar. Outros grupos estavam por ali – todos em seu primeiro dia de expedição. Alguns viajantes vieram pedir dicas e impressões da gente. A Dé apareceu, e agora estávamos todos do nosso grupo numa única mesa. Veio a comida (que era novamente macarrão – a gente não aguentava mais macarrão!), e pela última vez jantamos todos juntos. Assim que terminamos, o Ricky tomou a frente e preparou um agradecimento coletivo. Ressaltou o esforço de cada um, e novamente fomos… os últimos:

“Vocês dois… eu confesso que me enganei a respeito de vocês. Achei que os gordinhos (!) não iam conseguir, mas vocês estão aqui, e merecem os parabéns de todos nós!”

Meio fiodaputa, mas a gente aceitou o elogio.

Ainda mais porque em seguida os caras trouxeram duas garrafas de vinho (! de novo) pra todo mundo brindar o final daquele dia glorioso. O vinho era tão bom quanto o macarrão, mas e daí? Urubu na guerra é frango, meus amigos, e não ficou gota na garrafa. A ordem pro dia seguinte era que acordássemos mais ou menos cedo, tomássemos o café da manhã sem pressa e de lá seguíssemos calmamente até a base. Estava quase acabando, e fomos dormir com sentimento de missão cumprida…

…mas duvidando que nossos corpos (e pés) funcionariam na manhã seguinte.

Venezuela

Uma saga chamada Roraima (3/6)

5 de outubro de 2015

Seria uma manhã difícil. Possivelmente, a mais esperada até então, uma vez que subiríamos o Roraima – e isso já era motivo mais que suficiente para que acordássemos dispostos, mesmo com as dores que já nos incomodavam – a mim principalmente, pois o joelho de fato não estava nada bem. Imaginando o que viria pela frente, era hora de respirar fundo.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Do acampamento ao topo: um longo caminho.

Tomamos nosso café, pegamos nosso almoço (um sanduichinho de presunto e queijo embrulhado num saquinho plástico – guardem essa informação), aprontamos as coisas e saímos na frente de todo mundo (pois já estávamos cientes que seríamos os últimos a chegar no dia seguinte – então por que não começar na frente pra diminuir esse gap?). Descemos uma pequena trilha, cruzamos aquela cachoeirinha onde deveríamos ter tomado banho no dia anterior, e seguimos até o começo da subida.

É um trecho bastante acidentado, com obstáculos semelhantes a degraus – mas “não tão dóceis”, pois os pés encaixavam durante cada pequena subida, e a mudança entre os níveis não era tão suave. A trilha é evidente, mas longe de ser aquela coisa Começamos bem, mas não demorou para que o corpo começasse a dar sinais de cansaço. Durante essa primeira parte da subida, algumas pessoas e pequenos grupos desciam pela mesma trilha. Praticamente todos com quem cruzamos ofereciam palavras de incentivo, já sabendo o tamanho do desafio com que estávamos lidando. Algumas pausas para água – que encontrávamos com certa frequência pelo caminho, e isso facilitava um pouco as coisas. Nisso, o grupo todo havia passado pela gente – inclusive o guia, que esperava a passagem de todos em determinados lugares durante a subida.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Obstáculos dignos da jornada que apenas começava.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

Uma trilha não tão intuitiva, e bastante hostil.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

O cansaço começou cedo, e nem poderia ser diferente.

Água: um carinho na alma.

Água: um carinho na alma.

É difícil precisar o tempo de subida, mas enfim chegamos ao paredão do Monte Roraima. E foi uma alegria absurda, acreditem.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Chegar ao paredão: a primeira vitória. Olhar pra cima, e perceber que não tem nada ganho ainda.

Dali em diante, o caminho consistia numa trilha de subidas, descidas e alguns trechos retos mais longos, o que serviu pra gente descansar um pouco as pernas e viver um pouco mais a coisa. A impressão que se tem andando por ali é de estar num terreno de mata fechada, pois do lado oposto ao paredão existe uma vegetação fechada que impede a visão do penhasco. Porém, em alguns trechos essa mesma vegetação abre, e pessoas até então com medo de altura (como eu) têm duas opções: perder o medo ou voltar. Eu optei pela primeira, e posso dizer que nesse dia perdi meu medo definitivamente.

À direita, pedra. À esquerda, nada...

À direita, pedra. À esquerda, nada…

...além de uma vista espetacular.

…além de uma vista espetacular.

Nosso ritmo continuava mais lento que o dos demais, e em nosso último encontro com o guia ele já nos esperava há algum tempo, com cara de poucos amigos. Após dar a volta numa enorme pedra (e me livrar dos últimos resquícios de medo que ainda insistiam em me atormentar), começamos o trecho final da subida – o chamado “Paso De Las Lágrimas“, batizado assim por dois motivos: fica debaixo de um lugar que, durante as chuvas, vira uma pequena queda d’água (a 700 metros do chão, é bom relembrar); e por motivos óbvios – você já chega lá em cima querendo chorar, tamanha a dificuldade de todo o caminho, composto basicamente de enormes pedras amontoadas.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Desenhando, pra entender o tamanho da bucha.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra trás, a trilha no chão.

Olhando pra frente, lágrimas.

Olhando pra frente, lágrimas.

Minhas dores eram indisfarçáveis, e o guia notou que o desafio – que já era grande pros seres humanos normais – pra mim parecia ainda maior. Ele nos aguardava no início da subida, e de lá ele me deu o veredicto:

– Preciso ser sincero com você: vendo as dores que você está sentindo, e a dificuldade em subir esse trecho de hoje, eu aconselho que você volte antes. A gente sobre, você passa a noite lá em cima, e amanhã um dos carregadores volta com você pra base de hoje. O caminho lá em cima é todo de pedra, e com esse joelho assim é arriscado… fora que pra descer você vai sofrer demais. É o meu conselho, mas vocês decidem.

Ele saiu de perto. EU EMPUTECI.

Óbvio que ele estava certo, e com toda a razão do mundo. Mas eu não tinha penado tudo aquilo pra chegar lá em cima E DESCER ANTES. Já havia pipocado uma vez em outra viagem, e me recusei a seguir conselho de quem quer que fosse. Subi o Paso xingando o guia, a mãe do guia, a Jamaica e quem mais resolvesse se meter no meu caminho. E pouco depois, estávamos lá em cima – onde ele nos esperava, para dali em diante seguirmos até o “hotel” – nome dado ao lugar em que passaríamos as próximas duas noites. Havíamos subido o Monte Roraima, e enquanto a Dé estava feliz, eu soltava fumaça.

Foi então que… aconteceu.

O guia começou a caminhar em direção ao hotel, e nós o seguíamos – no começo, no mesmo ritmo, mas meu joelho latejava e eu fui ficando pra trás. A Dé, entre os dois, foi ficando comigo e se afastando do cara, que sumiu de vista. Começa a chover, e chover muito. A gente vê no horizonte o tal hotel – que é uma formação bem evidente, mas o caminho…

…é uma coisa única. A superfície do Monte Roraima não é comparável a nada que a gente conheça, e quando olhamos pra baixo não dá pra diferenciar uma área “gramada” de uma área alagada. Arriscamos atravessar, tentando chegar o quanto antes ao hotel. Já estávamos encharcados (não dava tempo de puxar jaqueta ou cobrir mochila, o tempo virou rápido demais), e num dos buracos indecifráveis a Dé literalmente AFUNDOU até a cintura de lama. Eu travei. Ela saiu, e nisso um dos carregadores chegou pra nos guiar até o hotel.

Ricky - nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Ricky – nosso guia, pouco antes de nos abandonar à própria sorte (e à chuva).

Nosso "hotel", ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Nosso “hotel”, ainda sem chuva. Detalhe à direita, onde ficava nosso banheiro.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Olhando do hotel, e debaixo de chuva, esse era o caminho em que nos daríamos MUITO, mas MUITO mal até a chegada.

Éramos os últimos. Chegamos sob uma salva de palmas que tinha como único objetivo nos animar, mas estávamos totalmente derrotados – talvez como nunca em nossas vidas. Aquilo era um pesadelo: botas alagadas, roupas encharcadas e cheias de lama, fazia um frio desgraçado lá em cima. Não sabíamos como nem onde trocar de roupa. Demos um jeito, e pouco depois eu saía da barraca pra buscar o jantar da Dé – mais um macarrão, e um copo grande de leite quente – porque ela tremia de frio já dentro do saco de dormir, agasalhada e tão derrotada quanto eu. Sabíamos que as botas não secariam até o dia seguinte, e não imaginávamos como seria possível passear durante um dia inteiro lá em cima sem elas. Seria o dia mais importante da viagem, e não bastando sermos os mais despreparados, éramos também os mais arrebentados e desequipados de todo o grupo. Precisávamos de um milagre para o quarto dia, e outro para os dois seguintes.

Dois milagres em três dias: não era pouco. Dormimos totalmente sem esperança.