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Coreia do Norte

Coreia do Norte: o Projac asiático

7 de janeiro de 2016

Rolou uma substituição de pauta de última hora por aqui. Preferi abordar outro tema, que me parece bastante pertinente, dados os últimos acontecimentos dessa quarta-feira. Existe um país que eu morro de vontade de conhecer, pelos motivos mais óbvios e bizarros que uma pessoa pode ter (e eles nunca são plenamente explicáveis). Estou falando da Coreia do Norte.

Deixando de lado o fato dos caras terem supostamente testado uma bomba H (com a naturalidade de quem resolve sair pra comer um pastel), lembro de ter começado a prestar atenção no país quando do sorteio da Copa da África do Sul, e o chaveamento no grupo do Brasil. Aí aconteceu o tal jogo, o Brasil ganhou por 2×1, e os jornais daqui noticiaram que por lá informaram uma suposta vitória norte-coreana. Eu achei bizarro, e a partir dali passei a me interessar por toda e qualquer notícia que envolvesse a Coreia do Norte. Pouco tempo depois, aquilo que era somente curiosidade virou uma obsessão, quando vimos a repercussão local da morte de Kim Jong-il. Eram cenas inacreditáveis – e continuam sendo:

Pra alguém que leu 1984, saí devorando tudo o que dizia respeito à Coreia do Norte: me emprestaram livro, revirei o YouTube, diversos blogs e textos, e assisti a todos os especiais que pudessem acrescentar algum tipo de conhecimento sobre aquele país totalmente alheio à globalização. A tal filosofia juche (de culto à personalidade, base da política implantada no país desde 1948 e que fez de Kim Jong-il e de seu pai, Kim Il-sung, verdadeiros deuses aos olhos dos norte-coreanos), o modelo comunista e socialista, a economia, a relação com o mundo exterior (e a não-relação com EUA, Coreia do Sul e Japão)… quanto mais a gente mexe, mais difícil de entender o quebra-cabeça que constitui a imagem de um país tão único – sem juízo de bem ou mal, apenas entendendo que ele se encaixa no contexto mundial como verdadeira exceção em praticamente todos os aspectos.

Se isso não é capaz de despertar o faniquito, o que seria?

Em todas as fontes pesquisadas, os relatos de quem se aventurou a conhecer o país são muito semelhantes. Das curiosidades incríveis aos recém-chegados, segue abaixo uma breve lista:

  • a companhia constante e obrigatória de pelo menos dois funcionários do governo (um guia e um motorista), pois a locomoção pela capital Pyongyang é devidamente programada, aprovada, e jamais feita de forma independente;
  • de uma ampla série de coisas e lugares possíveis de se conhecer, absolutamente todos fazem menção explícita e exaltada “à soberania nacional, e aos méritos de seus dois líderes e salvadores históricos” anteriormente citados. Nada de pegar um cineminha, ou mesmo dar uma volta pelas ruas;
  • o contato dos turistas com os cidadãos, se não nulo, é mínimo e controlado – nada de novas amizades;
  • quando em visita ao país, seus documentos são literalmente sequestrados, e somente devolvidos no dia de saída;
  • a moeda local para turistas é diferente da utilizada pelos locais (!);
  • das vinte estações de metrô, o turista só é autorizado a passear entre duas (Puhung e Kaeson);

  • além das estruturas, esculturas e memoriais militares e políticos, as grandes atrações turísticas do país são uma fábrica de garrafas, uma tecelagem, entre outros programas injustificáveis;
  • é possivelmente o único país no mundo em que o acesso à internet é proibido (pense no seu cotidiano, e transfira sua realidade pessoal para um contexto desses – seja bem-vindo a 1984: pesquisas na Barsa, Voz do Brasil – mas em coreano, e que no caso, dura um dia, todos os dias, e nada de Menudos ou programa do Chacrinha);
  • todos os cidadãos utilizam um broche com o rosto do comandante da nação;
  • teatro, cinema, música, artes e espetáculos em geral não destacam artistas: toda obra artística e intelectual pertence ao Estado, e consequentemente tem como tema seus comandantes, o partido dos trabalhadores e a filosofia Juche. Em outras palavras: toda manifestação cultural é propaganda política;
  • e se você acha tudo isso absurdo, saiba que foram criadas artificialmente no país duas flores, chamadas Kimilsungia e Kimjongilia (em homenagem óbvia a Kim Il-sung e Kim Jong-il).
Kim Il-sung e Kim Jong-il - o centro do universo na Coreia do Norte.

Kim Il-sung e Kim Jong-il – o centro do universo na Coreia do Norte.

É fascinante, absurdo, medonho, bizarro, misterioso e provocador.

Por isso mesmo eu quero conhecer. Minha imaginação concretiza a imagem de um verdadeiro Projac tamanho gigante. Será que é possível ser genuinamente feliz num lugar onde absolutamente tudo é controlado pelo governo, onde a liberdade de expressão é nula, e você é invadido diariamente e sem intervalos por propaganda política? Qual será o efeito prático que a ignorância pela censura causa no desenvolvimento racional e emocional dos norte-coreanos? É possível sonhar com o que acontece no restante do mundo? Desenvolver algum tipo de curiosidade? Contestar uma realidade que é totalmente moldada num discurso que não evoluiu ou agrega?

Eu duvido, de tudo isso. Mas eu sou ocidental, e calçando meus sapatos é fácil achar tudo isso descabido. Será que eu conseguiria por um mínimo instante calçar os sapatos de um norte-coreano, e conceber o que seria uma semana de vida de um cidadão comum em Pyongyang? Não, certamente não. Nem mesmo o turismo ao país permite algo próximo disso.

Turismo que é sim permitido, mas de maneira bastante peculiar. Seu acesso acontece somente pela China, e o preço é bastante proibitivo (li que gira em torno de R$ 6500,00, fora passagens e vistos), além de todas as observações listadas acima, e mais uma infinidade de detalhes que a gente vai descobrindo pelo caminho. Ou seja: por mais algum tempo a Coreia do Norte estará somente em minha imaginação e em minhas pesquisas.

Mas se valer o desafio, tente se colocar no seguinte cenário: roupas comportadas (semelhantes às que o mundo vestia nos anos 60), o tradicional e obrigatório broche do comandante do país no peito, pouca comida na mesa, muito trabalho, e uma obrigação constante de culto aos heróis nacionais; um em cada 3 de seus amigos é militar; o grande evento do país é um festival cuja atração principal é um enorme e inacreditável mosaico humano – o Arirang – que conta a história da “excepcional vitória norte-coreana sobre os vizinhos japoneses” (obviamente, sob o comando do Grande Líder)…

…seu inconformismo, sua revolta, seu desprazer – se existirem – não podem ser externados, sob pena de prisão, tortura e morte por traição; possivelmente seu casamento será arranjado, e seu mundo restrito às fronteiras desse país.

É a Coreia do Norte: esse enigma que um dia pretendo – se não desvendar – pelo menos tocar.


Mais algumas dicas:

  • A busca por imagens do país no Google não chega a ser ruim, mas se quiser acompanhar um canal muito bacana com imagens de lá, siga o DPRK360 no Facebook. As fotos são ótimas e aparentemente trazem um pouco daquilo que os turistas não têm possibilidade de conhecer no país (mas isso é só uma hipótese, como tudo o que é noticiado de lá…).
  • Sobre o Arirang e o culto ao grande líder, assista A State of Mind (2004), documentário britânico da BBC que está disponível na íntegra no Youtube (com legendas em inglês);
  • Uma das melhores séries de reportagens sobre a Coreia do Norte realizadas no Brasil foi feita pelo SBT, em 2005, no Jornal SBT Brasil – e também está disponível no Youtube.
  • Um depoimento no TED que fez bastante barulho há algum tempo diz respeito a uma norte-coreana que relata como foi crescer na Coreia do Norte, e hoje enxergar o país de fora. Também está disponível e legendado no Youtube.
  • Outro depoimento no TED diz respeito a uma sul-coreana que passou seis meses disfarçada no país, lecionando em inglês. A entrevista está disponível (sem legendas) nesse link.
Romênia

Nicolae

16 de março de 2015

Uma coisa que fica muito clara quando se visita o Leste Europeu: esqueça a imagem do comunismo vendida em Hollywood durante o período da Guerra Fria (anos 80, principalmente). Afinal de contas, foram os soviéticos (e não os americanos) que libertaram diversos países ao final da Segunda Guerra. De certa forma, foram eles os heróis da libertação desses povos do domínio nazista. O que foi feito dali em diante varia muito de país pra país* – alguns foram de fato oprimidos, outros saqueados, outros ainda agregados. E a vida seguiu, de um jeito que a gente não faz ideia – e por isso mesmo, é muito difícil de dizer se bem ou mal.

Um dos fragmentos daquilo que aprendemos se deu na Romênia. Mais especificamente, num dia de tour que fizemos, acompanhados de uma guia muito simpática (chamada Radica, ou Radika – fonema confirmado, grafia infelizmente não), mas que arranhava entre diversos idiomas o nosso Português: “Por causa das novelas“, ela me disse com uma fluidez tímida em nossa língua. Estávamos no ônibus, o passeio teria mais de duas horas, e fomos os últimos turistas recolhidos para o passeio. Pouco antes de seguirmos rumo a Brașov, fizemos um tour por Bucareste, onde nos foi pincelada muito resumidamente a secular história da Romênia. Logo de início, a pergunta básica feita a qualquer grupo de turistas:

– Qual é a primeira coisa que vem à cabeça quando vocês pensam “Romênia”?

E cada um pôde responder. Somente duas respostas eram ditas:

– Drácula/Vlad Tepes, e Transilvânia.

Até a pergunta chegar ao alien aqui, que respondeu:

– Ceaușescu.

Mais dois caras citaram isso depois, e mais adiante nossa guia contou uma breve história sobre Nicolae Ceaușescu. Minha resposta não foi em vão, pois de fato ele (ao lado de Gorbachev) faziam parte da minha pífia educação política enquanto criança. Era um nome diferente, vivia aparecendo na TV, na Veja, eu adorava a cobertura em preto e branco – mas cheia de sangue, que eu criança ainda não entendia de onde saía, mas era muito mais real do que o que eu via em cores nos filmes do Rambo. Assim como real também era aquela imagem desse senhor após seu fuzilamento, morto ao lado de sua esposa. Ficou na minha cabeça, e nunca mais saiu. Vieram Gheorghe Hagi, e Nadia Comăneci em relatos olímpicos, mas Nicolae era protagonista da minha “imagem romena padrão”. Passaram-se alguns minutos até que o assunto chegasse ao seu período de governo.

A enorme e lindíssima Bucareste.

A enorme e lindíssima Bucareste.

E da boca de uma romena pudemos ouvir um pouco sobre a história desse senhor. Sem desvios de imprensa, sem tradução simultânea:

Filiou-se ao Partido Comunista com o fim da Segunda Guerra Mundial. Gradativamente foi alçando cargos mais elevados, até se tornar presidente durante os anos 70. Baseado no modelo de governo da Coreia do Norte (Juche) e na Revolução Cultural Chinesa, tornou-se um líder totalitarista, e afastou a Romênia do bloco do leste, isolando-a da política comunitária proposta no Pacto de Varsóvia. A Securitate (polícia secreta romena) agia desde a década de 40, e multiplicou sua ação durante os anos de Ceaușescu. Povoados foram destruídos, assim como um quinto da Capital – uma área histórica, “que seria reconstruída segundo a vontade de Nicolae”.

A megalomania de Ceaușescu resume-se figurativamente no Parlamento de Bucareste (Palatul Parlamentului). Segundo maior edifício vertical do mundo (perde somente para o Pentágono), teve suas obras iniciadas em 1984 por uma arquiteta romena, sendo que até hoje não foi concluído – por sua extensão absurda, seus materiais caríssimos, entre outros motivos. Um monumento incompatível à situação miserável romena, erguido sobre uma colina (Colina Spirii), no lugar de 30 mil residências, e de diversas igrejas, das mais diversas religiões. O Parlamento era a tradução do culto à personalidade e da corrupção – duas marcas latentes de seu governo.

Após um confronto entre militares e manifestantes que iam contra o regime opressor de Ceaușescu, forças armadas e população alinharam-se. O ditador fugiu, mas foi capturado, julgado e morto.

Cenário esse que muitos sonham hoje em dia no Brasil.

O Parlamento Romeno: um edifício equivalente à megalomania de seu mentor.

O Parlamento Romeno: um edifício equivalente à megalomania de seu mentor.

Imponente, opressor e lindo.

Imponente, opressor e lindo.

Uma foto possível em um país democrático.

Uma foto turística, possível somente em um país agora democrático.

Se ainda hoje houvesse um líder semelhante a Ceaușescu governando a Romênia, essas fotos acima não seriam possíveis; não teríamos caminhado e aproveitado a beleza da cidade, do Parlamento (que hoje em dia funciona abrigando alguns órgãos de governo, além de um museu), das ruas, feirinhas e parques belíssimos, que merecerão outros futuros textos em nosso site.

Radica – ou Radika – contou algumas de suas histórias pessoais; de como as distâncias entre campo e cidade ainda hoje são grandes pelos desdobramentos do governo de Nicolae; de como a economia – mesmo após duas décadas de sua morte – ainda sofre para acompanhar o bloco. Se alegra em contar que hoje pode conversar com outras pessoas, estudar outros idiomas, trocar experiências… enfim, aprender e ensinar. Hoje Radica – ou Radika – pode viver em paz.


Nicolae Ceaușescu era um ditador. Como Hitler, Stalin e Kim Il-sung. Enquanto esteve no poder, minorias religiosas e étnicas foram dizimadas. Não havia liberdade de expressão. A censura era severa, atingia a imprensa, a população, e a polícia secreta eliminava ou desaparecia com os que se opunham ao regime. Pessoas eram vigiadas em todos os lugares, o tempo todo, e delatadas anonimamente.

Ditador é o principal comandante de um processo de ditadura. Ditadura é uma coisa que muitas pessoas querem hoje para o Brasil**. Durante a ditadura, viajar, conhecer, aprender e disseminar conhecimento são atividades proibidas ou fiscalizadas. O Faniquito não existe em  uma ditadura, pois “ter um faniquito” é uma atividade ilegal nesse tipo de regime. Por essa razão, entre outras tantas – em que basta tão somente a informação, um pouco de estudo, curiosidade, e nenhum passaporte, dinheiro gasto ou milhas acumuladas – que somos totalmente CONTRA qualquer posicionamento pró-ditadura ou golpe militar, sob qualquer circunstância. Vivemos – eu e a Dé – os últimos minutos desse regime, e dele quase não lembramos. Certas coisas – o poder pelas armas, a opressão, o racismo, a xenofobia, o extremismo religioso, a intolerância, o fanatismo, entre tantos outros males que notória e historicamente não são justificáveis sob nenhum aspecto. Nunca foram. E nunca serão.


*Sabemos que a dominação de um país durante determinados períodos históricos resulta na imediata exploração de seu povo, seus recursos e facilidades. Antes de botarmos o dedo na cara dos soviéticos, vale lembrar o que aconteceu com os nativos do NOSSO país quando da chegada dos então “conquistadores”, pra onde foram nossos recursos, entre outras semelhanças históricas. E ainda hoje “comemoramos essa descoberta”.

**Sugerimos esse rápido “exercício de sobrevivência a um regime ditatorial”, somente para confirmar as tantas e pesadas linhas de hoje. E interamos: não existe ditadura “mais” ou “menos” branda: qualquer coisa capaz de causar a morte, o sofrimento ou o trauma a uma única pessoa já vai contra nossa natureza, e merece todo o desprezo possível:  http://super.abril.com.br/jogo-ditadura-militar/