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Fitz Roy

Faniquito, Natureza

Natureza: o eterno fator surpresa

23 de fevereiro de 2015

Acho que a grande recompensa de qualquer coisa que a gente planeje minimamente é a correspondência às nossas expectativas. Buscar por algo e conseguir “chegar lá” te completa, e acaba te empurrando pra um novo desafio. É assim com a nossa vida amorosa, profissional e social. E funciona assim também quando estamos viajando. A expectativa pode jogar a favor ou contra, dependendo de como ela habita seus pensamentos e emoções.

Porém, existe um poder maior que sempre – e eu afirmo: SEMPRE – vai além: a natureza. E dela, por mais que se espere algo gigantesco por pura e evidente convenção, sempre vem um chorinho. Seja na estrutura, no clima, na geografia ou na combinação de todos esses fatores, a gente nunca sabe de que maneira será surpreendido. Imagens mentais costumam falhar miseravelmente a cada nova descoberta, o que é muito legal (nesses casos, sem masoquismo).

A gente não é capaz de imaginar essa quantidade gigante de cores num mesmo lugar.

A gente não é capaz de imaginar essa quantidade gigante de cores num mesmo lugar.

Ou ainda que uma paisagem possa parecer uma gigantesca e infinita folha em branco.

Ou ainda que uma paisagem possa parecer uma gigantesca e infinita folha em branco.

Nunca fui o entusiasta-mór desses destinos. Ainda hoje costumo misturar as vontades, buscando alguma cidade primeiro – e que de lá, de repente, se pintar algum lugar pra ver… mas confesso que a Dé é a voz da natureza aqui em casa. No final das contas, é só durante a viagem que eu acabo descobrindo esses destinos naturais – e eles acabam se destacando de tal forma que eu volto pra casa em estado de choque.

Esse fator surpresa é um sentimento que permeia todo e qualquer novo destino. É o que dá sentido a jogar-se no desconhecido, fazer com que a gente se disponha a passar certas dificuldades. Alguns lugares são absolutamente tranquilos e contemplativos; outros desafiam sua saúde, sua disposição e seus objetivos de uma forma implacável. E quando o assunto é enfrentar a natureza, a gente acaba aprendendo muito sobre juízo, e sobre nosso real lugar no mundo (e nosso tamanho ínfimo). Ficar perdido numa trilha, brincar à beira de um abismo, duvidar de certos obstáculos… bem, sua saúde mental pode dar claros avisos sobre o que aquilo é capaz de causar. Possivelmente é esse eterno conflito a minha pedra no caminho em buscar os desafios naturais por conta própria… mas não os recuso, quando eles chegam embrulhados num pacote, para serem abertos a quatro ou mais mãos.

Se sentir um nada, perto de um gigante de gelo do tamanho de uma cidade.

Se sentir um nada, perto de um gigante de gelo do tamanho de uma cidade.

Encontrar gelo, areia, terra, sol e água num mesmo lugar.

Encontrar gelo, areia, terra, sol e água num mesmo lugar.

Não há construção, monumento ou pintura que mexa mais com a gente do que um paredão de gelo azul, uma cachoeira gigante, um deserto branco ou um fim de tarde acima das nuvens. A gente leva um soco na cara quando o mundo – aquele mesmo lugar em que a gente se acostumou a viver todos os dias, e que tem sempre a mesma cara – te mostra a própria grandeza. E a gente apanha, com gosto, porque o danado é bonito demais, e nunca deixa de te surpreender – e corresponder. Não é nenhum demérito achar graça naquele céu que todo dia cobre a sua cabeça, mas que de repente parece estar mais bonito. Ou prestar atenção na grama. Ficar procurando formas engraçadas nas pedras, ou experimentar botar o pé naquela água gelada.

É o que as crianças fazem. E elas normalmente sabem como aproveitar o mundo.

Se cercar de água - esse elemento tão raro e valioso (sabemos bem disso, não?)...

Se cercar de água – esse elemento tão raro e valioso (sabemos bem disso, não?)…

...e entender a hora em que a natureza te fala "chega, vai pra casa tomar um banho e comer alguma coisa".

…e entender a hora em que a natureza te fala “Chega, vai pra casa tomar um banho e comer alguma coisa”.

É de encontro a ela que a gente também acaba confirmando algumas máximas: ela manda, a gente obedece – SIM; não somos donos do planeta, pois mal sabemos a quantidade de coisas que fazem parte dele, e compõem essa imensidão que uma vida não basta pra gente conhecer; e acima de tudo, o quanto a gente é responsável por cuidar bem da nossa casa. Onde quer que você vá, as instruções de “não leve uma pedrinha pra casa”, “não toque nessa parede”, “não mexa nessa coisinha” deixam claro o quanto a nossa passagem por aqui é rápida, e há quanto ela é de fato a responsável por manter a nossa vida vivível. A gente pode aprender um novo idioma, a comer coisas que não está acostumado, a mudar alguns hábitos, mas nenhuma lição é maior do que essa: admirar passivamente, e participar desse tipo de preservação é cuidar de sim mesmo. De quem você ama. De quem você não conhece. E mais do que isso: da nossa casa. De todos nós.

Argentina

Conhecendo El Chaltén

16 de fevereiro de 2015

Uma cidade, mas pode chamar de vila. El Chaltén não possui sequer mil habitantes, e é a cidade mais nova da Argentina (nasceu em 1985, delimitando uma fronteira com o Chile por meio de ocupação). Chegamos lá de ônibus, partindo de El Calafate, numa viagem razoavelmente rápida de 220 km pela RP 23 – existem passeios de um dia, com saída e chegada em Calafate, feitos da mesma maneira.

Ainda no ônibus, o Fitz Roy é o cartão de visitas.

Ainda no ônibus, o Fitz Roy é o cartão de visitas.

E de fato, conhecer a cidade não é tarefa difícil ou demorada. A estrada desemboca em sua rua principal (Miguel Martín de Güemes), que divide o vilarejo em duas partes: do lado direito (cuja rua principal é a San Martín), os restaurantes, alguns hotéis e albergues, lojas e bares; do lado esquerdo (cuja rua principal é a José Antonio Rojo), residências em sua grande maioria, com algumas exceções para hospedarias de menor porte e alguns restaurantes. Ambos os lados acessados a partir de uma bifurcação daquela mesma rua principal, chamada Lago del Desierto. É essa a geografia da cidade, que de tão simples pode ser desbravada num passeio à pé em menos de uma hora – se o vento patagônico te deixar.

A chegada pela Miguel Martín de Güemes.

A chegada pela Miguel Martín de Güemes.

O guia de ruas, nada complexo.

O guia de ruas, nada complexo.

A San Martín. Nosso albergue ficava no final.

A San Martín. Nosso albergue ficava no final.

El Chaltén ainda é notoriamente um vilarejo, cujo ritmo de construção está em vias de torná-lo uma cidade de fato. Porém, seu maior atrativo não encontra-se dentro desse perímetro descrito anteriormente. É de Chaltén o ponto de partida para alguns dos lugares mais espetaculares da Patagônia Argentina: o Cerro Fitz Roy, o Cerro Torre, a Laguna de Los Tres, o Glaciar Viedma, além de ser um dos acessos ao gigantesco Parque Nacional Los Glaciares. Todos esses lugares são motivos mais que suficientes para visitá-la, e no fim das contas a cidade em si fica em segundo plano, em meio a outras tantas boas atrações.

Mas Chaltén tem seu charme. A começar justamente por esse aspecto de “em construção”. Há somente um posto de gasolina (onde o motorista enche o próprio tanque – ou galão de reserva, soubemos que sim, existe gente carregando gasolina dentro do próprio carro), e a comunicação com os moradores por vezes acontece em papéis fixados na porta da rodoviária – exatamente como no elevador do seu prédio. A cidade é ladeada pelo Río de las Vueltas, que tem uma cor azul-esverdeada extremamente bonita. O aspecto da água é turvo de tão gelado, pois o rio é proveniente do degelo dos glaciares. Dá pra chegar bem pertinho, mas mergulhar, nem pensar… O som é quente, o vento gelado. Uma jaqueta corta-vento é tão importante quanto um par de Havaianas, então leve ambos.

O posto de gasolina - que sim, funciona.

O posto de gasolina – que sim, funciona.

O informativo local funciona na base do sulfite e durex.

O informativo local funciona na base do sulfite e durex.

O verde e geladíssimo Río de Las Vueltas.

O verde e geladíssimo Río de Las Vueltas.

Pelo caminho encontra-se uma pequena capela (Toni Egger Gnadenkapelle – Toni Egger foi um alpinista austríaco, e o primeiro a morrer tentando superar o Cerro Torre – também dá nome a um de seus picos), que serve de memorial aos que não regressaram do Fitz Roy ou do Torre. Ilustram a paisagem a tradicional igrejinha, uma pequena escola que fica ao lado de um parquinho, entre outras imagens comuns a vilarejos. Durante a tarde o movimento das ruas é quase nulo, mas sempre existem pequenos grupos bebendo ou comendo na entrada de hospedarias e alguns restaurantes. Os rostos tornam-se familiares muito rapidamente (estando hospedado em Chaltén, certamente você verá as mesmas pessoas por diversas vezes). Além disso, a cidade é repleta de cães – sem dono, mas extremamente amáveis – que estavam por lá desde a época da briga pela fronteira, e hoje habitam a região.

A capela - um memorial aos que ficaram nas montanhas.

A capela – um memorial aos que ficaram nas montanhas.

Todo vilarejo que se preze tem sua igrejinha.

Todo vilarejo que se preze tem sua igrejinha.

O cair da tarde traz todo o tom bucólico que a cidade carrega.

O cair da tarde traz todo o tom bucólico que a cidade carrega.

Um dos simpáticos, lindos e pidões cachorros que estão espalhados por Chaltén.

Um dos simpáticos, lindos e pidões cachorros que estão espalhados por Chaltén.

Nas lojinhas a gente encontra alguns badulaques pra levar de lembrança, mas nada muito fora do comum – postais, mapas, artesanatos e camisetas temáticas são o que mais se vê – existe uma loja bem grande logo na entrada da cidade, onde os turistas fazem a festa. Porém, o forte da cidade são os esportes de aventura, e a gente acaba encontrando também algumas lojas de suporte a alpinistas, montanhistas, ciclistas e adeptos de camping. O tema é recorrente, e isso é explícito até nos lugares mais inusitados. Roupas, suprimentos e equipamentos estão lá, tanto para iniciantes como para esportistas profissionais. Algumas agências dão suporte aos passeios pela região, e dicas importantes para a prática das modalidades. Nessas agências a gente também encontra o mapa da cidade – que torna-se absolutamente denecessário depois de umas duas voltas por lá.

Uma lojinha com a cara do fim do mundo.

Uma lojinha com a cara do fim do mundo.

Algumas capricham na propaganda.

Algumas capricham na propaganda.

Mas a cidade é dos montanhistas - até na hora de jogar o lixo fora.

Mas a cidade é dos montanhistas – até na hora de jogar o lixo fora.

Obviamente come-se muito bem por lá* – fator recorrente em toda a Patagônia. O Parrilla Como Vaca (http://tinyurl.com/le4k42l) é um baita lugar pra uma carne bem-feita e gostosa; se quiser algo um pouco mais sofisticado, o La Tapera (http://tinyurl.com/l9fp4xc) atende muito bem às expectativas – mas chegue cedo, pois o lugar lota e é pequeno; para um bom custo-benefício, a Patagonicus (http://tinyurl.com/l66x6ql) pode funcionar para uma pizza no meio do dia, ou mesmo um lanche. Existem outras opções, e entre elas a gente destaca justamente a que mais usou: o restaurante de nosso albergue. O Hostel Rancho Grande (http://tinyurl.com/psxvetn) possui poucos, generosos e ótimos pratos, além de um menu de café da manhã pra alpinista nenhum botar defeito. Um conforto de verdade pra qualquer aventura. Obviamente há alguns cafés, sorveterias e outros lugares minúsculos, que merecem uma vasculhada com carinho.

Cortes explicados, comida vistosa, uma pizza ocasional, ou um PF honestíssimo: passar fome não será um problema.

Cortes explicados, comida vistosa, uma pizza ocasional, ou um PF honestíssimo: passar fome não será um problema.

Enfim, El Chaltén é um ótimo lugar, seja pra se preparar, seja descansar depois de uma incursão às belezas da região. Um lugar para desligar a cabeça, e curtir um pouco do sossego que a Patagônia Argentina oferece. E o cenário – pois a minúscula cidade possui uma visão privilegiada para os Cerros Torre e Fitz Roy – é para poucos. No caso de Chaltén, menos de mil. Dado que escalá-los e superá-los é uma missão somente para alguns sobre-humanos, nos resta observar. E já vale muito.

Cerros Torre e Fitz Roy: apenas para profissionais.

Cerros Torre e Fitz Roy: apenas para profissionais.

Aproveitem, enquanto a cidade ainda é uma criança, e desse tamanho.


*Nossos textos não são patrocinados. A gente indica aquilo que a gente gosta/aprova, porque isso também ajuda na viagem alheia. Simples assim.