Rolou uma substituição de pauta de última hora por aqui. Preferi abordar outro tema, que me parece bastante pertinente, dados os últimos acontecimentos dessa quarta-feira. Existe um país que eu morro de vontade de conhecer, pelos motivos mais óbvios e bizarros que uma pessoa pode ter (e eles nunca são plenamente explicáveis). Estou falando da Coreia do Norte.
Deixando de lado o fato dos caras terem supostamente testado uma bomba H (com a naturalidade de quem resolve sair pra comer um pastel), lembro de ter começado a prestar atenção no país quando do sorteio da Copa da África do Sul, e o chaveamento no grupo do Brasil. Aí aconteceu o tal jogo, o Brasil ganhou por 2×1, e os jornais daqui noticiaram que por lá informaram uma suposta vitória norte-coreana. Eu achei bizarro, e a partir dali passei a me interessar por toda e qualquer notícia que envolvesse a Coreia do Norte. Pouco tempo depois, aquilo que era somente curiosidade virou uma obsessão, quando vimos a repercussão local da morte de Kim Jong-il. Eram cenas inacreditáveis – e continuam sendo:
Pra alguém que leu 1984, saí devorando tudo o que dizia respeito à Coreia do Norte: me emprestaram livro, revirei o YouTube, diversos blogs e textos, e assisti a todos os especiais que pudessem acrescentar algum tipo de conhecimento sobre aquele país totalmente alheio à globalização. A tal filosofia juche (de culto à personalidade, base da política implantada no país desde 1948 e que fez de Kim Jong-il e de seu pai, Kim Il-sung, verdadeiros deuses aos olhos dos norte-coreanos), o modelo comunista e socialista, a economia, a relação com o mundo exterior (e a não-relação com EUA, Coreia do Sul e Japão)… quanto mais a gente mexe, mais difícil de entender o quebra-cabeça que constitui a imagem de um país tão único – sem juízo de bem ou mal, apenas entendendo que ele se encaixa no contexto mundial como verdadeira exceção em praticamente todos os aspectos.
Se isso não é capaz de despertar o faniquito, o que seria?
Em todas as fontes pesquisadas, os relatos de quem se aventurou a conhecer o país são muito semelhantes. Das curiosidades incríveis aos recém-chegados, segue abaixo uma breve lista:
- a companhia constante e obrigatória de pelo menos dois funcionários do governo (um guia e um motorista), pois a locomoção pela capital Pyongyang é devidamente programada, aprovada, e jamais feita de forma independente;
- de uma ampla série de coisas e lugares possíveis de se conhecer, absolutamente todos fazem menção explícita e exaltada “à soberania nacional, e aos méritos de seus dois líderes e salvadores históricos” anteriormente citados. Nada de pegar um cineminha, ou mesmo dar uma volta pelas ruas;
- o contato dos turistas com os cidadãos, se não nulo, é mínimo e controlado – nada de novas amizades;
- quando em visita ao país, seus documentos são literalmente sequestrados, e somente devolvidos no dia de saída;
- a moeda local para turistas é diferente da utilizada pelos locais (!);
- das vinte estações de metrô, o turista só é autorizado a passear entre duas (Puhung e Kaeson);
- além das estruturas, esculturas e memoriais militares e políticos, as grandes atrações turísticas do país são uma fábrica de garrafas, uma tecelagem, entre outros programas injustificáveis;
- é possivelmente o único país no mundo em que o acesso à internet é proibido (pense no seu cotidiano, e transfira sua realidade pessoal para um contexto desses – seja bem-vindo a 1984: pesquisas na Barsa, Voz do Brasil – mas em coreano, e que no caso, dura um dia, todos os dias, e nada de Menudos ou programa do Chacrinha);
- todos os cidadãos utilizam um broche com o rosto do comandante da nação;
- teatro, cinema, música, artes e espetáculos em geral não destacam artistas: toda obra artística e intelectual pertence ao Estado, e consequentemente tem como tema seus comandantes, o partido dos trabalhadores e a filosofia Juche. Em outras palavras: toda manifestação cultural é propaganda política;
- e se você acha tudo isso absurdo, saiba que foram criadas artificialmente no país duas flores, chamadas Kimilsungia e Kimjongilia (em homenagem óbvia a Kim Il-sung e Kim Jong-il).
É fascinante, absurdo, medonho, bizarro, misterioso e provocador.
Por isso mesmo eu quero conhecer. Minha imaginação concretiza a imagem de um verdadeiro Projac tamanho gigante. Será que é possível ser genuinamente feliz num lugar onde absolutamente tudo é controlado pelo governo, onde a liberdade de expressão é nula, e você é invadido diariamente e sem intervalos por propaganda política? Qual será o efeito prático que a ignorância pela censura causa no desenvolvimento racional e emocional dos norte-coreanos? É possível sonhar com o que acontece no restante do mundo? Desenvolver algum tipo de curiosidade? Contestar uma realidade que é totalmente moldada num discurso que não evoluiu ou agrega?
Eu duvido, de tudo isso. Mas eu sou ocidental, e calçando meus sapatos é fácil achar tudo isso descabido. Será que eu conseguiria por um mínimo instante calçar os sapatos de um norte-coreano, e conceber o que seria uma semana de vida de um cidadão comum em Pyongyang? Não, certamente não. Nem mesmo o turismo ao país permite algo próximo disso.
Turismo que é sim permitido, mas de maneira bastante peculiar. Seu acesso acontece somente pela China, e o preço é bastante proibitivo (li que gira em torno de R$ 6500,00, fora passagens e vistos), além de todas as observações listadas acima, e mais uma infinidade de detalhes que a gente vai descobrindo pelo caminho. Ou seja: por mais algum tempo a Coreia do Norte estará somente em minha imaginação e em minhas pesquisas.
Mas se valer o desafio, tente se colocar no seguinte cenário: roupas comportadas (semelhantes às que o mundo vestia nos anos 60), o tradicional e obrigatório broche do comandante do país no peito, pouca comida na mesa, muito trabalho, e uma obrigação constante de culto aos heróis nacionais; um em cada 3 de seus amigos é militar; o grande evento do país é um festival cuja atração principal é um enorme e inacreditável mosaico humano – o Arirang – que conta a história da “excepcional vitória norte-coreana sobre os vizinhos japoneses” (obviamente, sob o comando do Grande Líder)…
…seu inconformismo, sua revolta, seu desprazer – se existirem – não podem ser externados, sob pena de prisão, tortura e morte por traição; possivelmente seu casamento será arranjado, e seu mundo restrito às fronteiras desse país.
É a Coreia do Norte: esse enigma que um dia pretendo – se não desvendar – pelo menos tocar.
Mais algumas dicas:
- A busca por imagens do país no Google não chega a ser ruim, mas se quiser acompanhar um canal muito bacana com imagens de lá, siga o DPRK360 no Facebook. As fotos são ótimas e aparentemente trazem um pouco daquilo que os turistas não têm possibilidade de conhecer no país (mas isso é só uma hipótese, como tudo o que é noticiado de lá…).
- Sobre o Arirang e o culto ao grande líder, assista A State of Mind (2004), documentário britânico da BBC que está disponível na íntegra no Youtube (com legendas em inglês);
- Uma das melhores séries de reportagens sobre a Coreia do Norte realizadas no Brasil foi feita pelo SBT, em 2005, no Jornal SBT Brasil – e também está disponível no Youtube.
- Um depoimento no TED que fez bastante barulho há algum tempo diz respeito a uma norte-coreana que relata como foi crescer na Coreia do Norte, e hoje enxergar o país de fora. Também está disponível e legendado no Youtube.
- Outro depoimento no TED diz respeito a uma sul-coreana que passou seis meses disfarçada no país, lecionando em inglês. A entrevista está disponível (sem legendas) nesse link.