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Auschwitz

Faniquito

Motivação e consequências

8 de março de 2016

Das tantas coisas que já ouvimos por aí, repercutindo e discutindo as viagens que fizemos, algumas destacam-se e repetem-se com mais frequência. Quando a história envolve algo que seja “fora da curva”, como um destino inusitado, uma dificuldade maior, uma alternativa aos hábitos, as respostas variam: “Eu nunca faria“, “vocês são doidos” e “isso não é lugar que se visite” já cruzaram nosso caminho várias vezes. Não dá pra culpar – cada uma tem sua motivação, e a nossa não é a mais comum de todas.

Talvez seja difícil explicar porquês, mas eu vou tentar assim mesmo.

Ontem estávamos assistindo Winter On Fire: Ukraine’s Fight for Freedom, que é um dos documentários que concorreram ao Oscar desse ano. Trata de um conflito entre o povo ucraniano e seu governo, e ao invés de revelar mais sobre o filme, indico que vocês assistam (ao trailer abaixo, inclusive).

Pois bem. O cenário principal da história é Maidan Nezalezhnosti – a praça central de Kiev. Não sabemos nada sobre a Ucrânia. Assim que os créditos começaram a subir, conhecer Maidan Nezalezhnosti tornou-se um objetivo de vida. Não pela beleza do lugar (e ela justificaria um passeio), nem pelos encantos da Ucrânia. Eu quero em algum momento pisar naquele mesmo chão que um povo de um país soube dar significado ao conceito de nação, de uma forma quase suicida. Um sentimento, que virou motivação, que virou uma revolução.

Motivação. De uma forma muito menor, mas semelhante, que tive ao colocar Auschwitz na minha lista de destinos quando, num futuro qualquer, tivesse a chance de visitar o continente europeu. De buscar num mesmo espaço (obviamente, em períodos diferentes) um maior entendimento sobre certos capítulos que fizeram a gente ser o que é hoje em dia. Como aqui mesmo, no meu país, eu quero me aprofundar com o tempo naquilo que foi e onde aconteceu o período mais nebuloso da nossa História, e tirar da ditadura essa embalagem escrita TABU, para tratá-la da forma como deve ser encarada – uma lição de algo que não queremos mais fazer parte. Minha busca pessoal, viajando ou não, é tentar entender como as pessoas funcionam. E nem sempre dá, todos nós sabemos disso. Sei que a Dé funciona de outra maneira, pois ela tem seus próprios objetivos e buscas pessoais. Assim como você, que está lendo esse texto.

Pra quem prefere conhecer o mundo pela janela, explicar esse tipo de motivação é algo muito complicado. Por que cacetes alguém quer conhecer uma zona de conflito? Uma cidade miserável? Um país sem estrutura? Usar seu tempo livre enfrentando dificuldades, ao invés de partir pro conforto e recompensa?

Não sei.

Maidan Nezalezhnost, e a motivação de demarcar um espaço durante a Revolução.

Maidan Nezalezhnost, e a motivação de demarcar um espaço durante a Revolução.

Mas sei que nos sentimos recompensados. A cada nova viagem a ser pensada (e estamos passando por esse dilema nesse momento), fica cada vez mais claro que gostamos e compartilhamos de um mesmo sentimento: o de conhecer o mundo, em todas as suas camadas, ou pelo menos o máximo que conseguirmos. Em cada dia de pesquisa, a gente aprende um pouco mais. Contesta mais ainda. Se surpreende com coisas novas. Vai traçando planos, desviando rotas, buscando novos desafios. E nos sentindo menores…

Colocando a coisa em perspectiva, para tentar passar uma ideia geral do quanto somos insignificantes e ignorantes: são quase duzentos os países no mundo. De quantos você recebe alguma notícia diariamente? Mais: dos vinte e seis Estados brasileiros, de quantos você de fato sabe ou conhece alguma coisa pra valer? Não dá pra não se coçar, quando a gente nota o quão ínfimo é esse nosso microcosmo. E tomando ciência de histórias como a que assistimos no documentário da Netflix, resistir ao fascínio desse contato direto com a evolução (ou não) do ser humano pelo conhecimento parece um conformismo quase mesquinho. Tão mesquinho quanto se colocar acima de outra pessoa, de ignorar uma nação, ou mesmo de se achar no direito de dizimar um povo.

Num momento tão conturbado e de tanta discussão mundo afora, é hora de nos tornarmos mais responsáveis por aquilo que somos, o que queremos e como faremos pra conseguir. O planeta já girou o suficiente pra nos ensinar grandes lições, mas às vezes o aprendizado precisa ultrapassar o consciente pra chegar no coração. É disso que botar o pé no mundo se trata: mudar os sapatos, dormir numa cama diferente, entender o porquê das coisas, chegando de fora pra, em algum momento, talvez se sentir de dentro.

Entendendo isso, a gente consegue explicar o porquê de tanta vontade em conhecer uma praça no centro de Kiev, por exemplo.

Faniquito

Quando machuca

30 de abril de 2015

O texto de hoje é um pouco diferente.

Ele levanta uma questão que vem tomando minha atenção há algum tempo, mais especificamente, desde que soubemos que nossa viagem a Auschwitz “não foi algo tão bem recebido” por algumas pessoas – umas mais próximas, outras nem tanto. Entenda-se pela expressão entre aspas como uma forma simplista de tentar traduzir por vezes inconformismo, por outras perplexidade o fato de termos visitado um local cuja história é notoriamente triste, e de um contexto cujas explicações são desnecessárias.

“Não dá pra entender… ir pra um lugar desses, nas férias? Uma época pra se divertir, não pra… isso. Quem sai de casa pra ficar deprimido? Ver esses horrores, isso acaba com qualquer clima, não relaxa. Não faz sentido, não é pra mim. Eu nunca iria…”

Antes de qualquer coisa: é uma reflexão válida, e possui algum sentido.

De fato a primeira coisa que a gente imagina quando pensa em férias é “aproveitar o tempo livre“. É a maior das verdades. Pra muitos, significa poder fazer nada, ou usar aquelas poucas semanas disponíveis pra “condensar a felicidade” em passeios, compras, reuniões, almoços e visitas. “Pensar férias” pode significar um “momento margarina“: normalmente é essa a ideia vendida em qualquer material promocional turístico. Não existem pessoas sozinhas, tristes ou introspectivas nos anúncios de viagens. Aparentemente, as férias significam que após um ano de trabalho duro, finalmente chegamos lá – e quando você chega lá, acorda, passa o dia e dorme sorrindo. Pode parecer besteira, mas a gente morde essa isca, mesmo sem querer. É hora de desligar. E quem desliga, não quer pensar muito.

– Tristeza? Longe de mim. Choque? Já não me chega esse cotidiano terrível, essa coisa corrosiva…? Eu não vou usar meu pouco tempo livre tentando entender a dor e o sofrimento alheio. Isso é coisa de masoquista,

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Cela do Presídio de Ushuaia (Argentina)

Pois bem. Entendido o outro lado, vou expor o meu.

Já estivemos em alguns lugares cuja descrição é oposta ao pensamento acima: prisões, campos de concentração, instalações militares, ruínas de guerra, museus de tortura, etc. Antes de qualquer coisa: gostamos do assunto – eu, especialmente, tenho um fascínio inexplicável por esse tipo de coisa, e não é de hoje. Tem gente que enlouquece num free shop, outros que voltam encantados com hotéis e restaurantes espetaculares, tem quem se derreta por museus e pontos turísticos, e mais alguns que capotam com a beleza da natureza (também faço parte desse grupo de uns tempos pra cá). Mas minha principal motivação tem base no ser humano, sua essência e complexidade – eu não posso negar.

Talvez por isso encontrá-lo num contexto limítrofe seja algo tão incrível.

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Memorial em homenagem às crianças judias (Eslováquia)

Nossa vida cotidiana é na maioria das vezes estabelecida em uma rotina muito parecida, com mais ou menos poder aquisitivo, regrada por uma política aberta e com liberdade de expressão (esqueçam bandeiras e porta-vozes, mirem somente no contexto). Entrar em contato – mesmo que minimamente e de forma quase superficial – com outro tipo de realidade é uma experiência transformadora, no sentido mais escancarado da expressão. Mesmo com tanta imagem pronta, tanta referência histórica, tanto filme e tanto livro, sequer arranhamos a possibilidade de que certos acontecimentos tenham de fato ocorrido. Que tais coisas tenham existido. Enfim, que aquilo seja de verdade, e não cenário montado. Nada te prepara pra isso, e viajar para esses lugares exige sim estômago, alguma coragem e muito coração.

Somos pessoas que normalmente passam longe desses limites. Saber de histórias in loco, conhecer personagens (heróis, vilões ou simplesmente ilustres desconhecidos), pisar, tocar e ver certas coisas quebra a fantasia e nos transporta pra realidade mais distante e impensável possível. Pra quem imagina que essa jornada seja nociva, eu respondo que essa talvez seja uma das poucas – senão a única maneira de nos colocarmos no lugar de um desses personagens. E a vida nos ensina que essa passagem é a forma mais efetiva de mudarmos nossa maneira de agir e reagir a determinadas situações, coisas ou pessoas. Calçar os sapatos alheios pode nos trazer conforto ou incômodo, mas com certeza não nos deixa indiferente aos passos que se seguem.

Memorial "Sapatos às Margens do Danúbio" (Hungria)

Memorial “Sapatos às Margens do Danúbio” (Hungria)

Mas quem – estando de férias – quer se colocar no lugar de um prisioneiro? De um escravo? De um soldado? Um carrasco? Um nazista?

Pois é. Não é somente entrar em contato: é encarnar o personagem. Entender de dentro, sem intervalos comerciais, palavras cuidadosas ou tempo pra respirar. Sim, é uma experiência fortíssima, mas faz nossa mente abrir e nunca mais voltar ao tamanho de antes. Aquele sentimento distante vira perplexidade. Como era possível fazerem isso? Como esses caras aguentavam? Quem conseguia levar uma vida assim? Você vai embora com quilos e quilos de interrogações incômodas, mas necessárias pra nossa evolução pessoal. Deixamos por lá os preconceitos, o medo e o ranso. Às vezes ganhamos desgosto por aquilo que fomos capazes de fazer um dia, mas ele funciona como uma tatuagem: você leva consigo, e não repassa. Aquilo é seu, e pra sempre será.

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Homenagem aos civis mortos durante a Revolução Húngara de 1956

Enfim… aos que duvidam ou desgostam desse tipo de viagem, ou de sua proposta, eu deixo um pensamento: a vida não é feita somente de felicidade. Às vezes as grandes obras – que tanto admiramos e tomamos de exemplo – são deixadas por pessoas que sofreram com dores, castigos e penas impensáveis pra gente. Mais importante do que valorizar o resultado é entender o processo – e ele nem sempre acontece num caminho de flores. Portanto, entrar em contato com aquilo que fomos capazes de fazer um dia só nos faz crescer, mesmo de uma maneira que não pareça ideal num primeiro momento. Pro bem ou pro mal, o ser humano evolui todos os dias. Não tenha medo de evoluir alguns anos em poucas horas – porque no fim das contas, é isso o que de fato acontece.