Polônia

Arbeit macht frei (1/2)

19 de novembro de 2015

Visitar Auschwitz foi possivelmente a experiência mais marcante da minha vida.

Em um texto anterior, expliquei minha fascinação por assuntos de guerra, seus memoriais e como isso me emociona. Há algum tempo estou ensaiando pra escrever esse texto, uma vez que – imagino – nenhum tipo de explicação seja capaz de quantificar o impacto que estar num campo de concentração, num presídio ou ruína causa na gente. Então cheguei à conclusão de que, ao invés de descrever como foi o dia de visita, melhor contar desordenadamente como um único dia foi capaz de mudar minha cabeça pra sempre. Não será a última vez que falaremos de Auschwitz por aqui (futuramente a Dé contará a história dela, da forma que quiser), e explico isso por fazer questão que esse relato seja algo totalmente meu, mesmo.

Ao adquirir o tour para Auschwitz, você visita dois locais: Auschwitz I durante a manhã (os famosos prédios de tijolos, construídos para servirem de alojamento à artilharia nazista, e que posteriormente foram transformados em campos de concentração), e Auschwitz II-Birkenau à tarde (o campo de extermínio, onde os trens desembarcavam os judeus para execução). Auschwitz não é Auschwitz, mas sim a pequena cidade de Oświęcim, rebatizada durante o domínio alemão com o famoso nome. Nosso tour saía da Cracóvia, e a distância de aproximadamente 70 km serviu para preparar o grupo para o que viria a seguir. Na própria van, o documentário Die Befreiung von Auschwitz (A Libertação de Auschwitz) foi assistido em silêncio sepucral durante uma hora. Devo ter chorado umas 3 ou 4 vezes, e não fui o único. Trata-se do registro cinematográfico oficial feito pelos soviéticos quando da libertação dos campos, e as imagens são EXTREMAMENTE fortes. O vídeo completo (com narração em inglês, assim como assistimos) está disponível logo abaixo. As cenas são fortíssimas, e não recomendadas a estômagos mais sensíveis.

A chegada ao campo já traz esse desconforto, e dali em diante uma guia e sua acompanhante – funcionária designada pelo próprio Museu de Auschwitz, com a função de evitar qualquer distorção aos fatos reais – acompanham o grupo. As explicações são feitas por meio de rádio, e são distribuídos fones e decodificadores aos visitantes. Com isso, mesmo com a verdadeira multidão presente (e distribuída em diversos e esparsos grupos), o silêncio impera quando se passar pelo portão principal. Passar pelo letreiro Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”) tem o impacto de ser pisoteado por um gigante. As costas pesam. Mesmo sendo um lugar tão conhecido, é impossível ficar indiferente e não imaginar o que de fato aconteceu com as pessoas que pisaram naquele mesmo chão um dia. As imagens em preto e branco dão espaço a uma realidade de cores terrosas e muito bonitas – pode parecer absurdo dizer isso, mas sim: Auschwitz I é um lugar belíssimo (não esquecendo que antes de se tornar o que se tornou, seus prédios eram um alojamento). Todo o cuidado e estrutura de hoje obviamente contrastam com o estado das instalações no período em que foram utilizadas.

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

O título deste texto é a maior mentira já contada na História da humanindade

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

A beleza mórbida e pesada de Auschwitz I.

Os passos são lentos entre as alamedas, agora livres dos cercados da época (porém, alguns corredores permanecem intactos, cercados por arame farpado e totalmente claustrofóbicos). Grande parte dos edifícios é aberta à visitação, abrigando o museu que dá nome ao complexo: fotos dos prisioneiros, mapas estatísticos, uniformes, objetos pessoais, manchetes de jornal, infográficos, maquetes e estátuas ocupam seus interiores. Numa determinada área, uma simulação de fluxo de prisioneiros até a morte nas câmaras de gás, e uma lata de Zyklon-B (pesticida à base de cianureto, “a grande descoberta dos nazistas para extermínio de massa a baixo custo, uma vez que os fuzilamentos eram demorados e caros, dada a quantidade de balas gasta pelo exército nazista“).

Os corredores cercados.

Os corredores cercados.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

Alguns dos uniformes utilizados pelos prisioneiros.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

O Zyklon-B, explicado e exibido.

Uma das áreas mais impressionantes era sem dúvida a adaptação do espaço interno em um prédio, onde acumulavam-se os pertences pessoais dos prisioneiros. Com a promessa de trabalho no local, os judeus chegavam carregando em mãos aquilo que podiam. Após sua chegada, tudo lhes era tirado (ou melhor, roubado) pelo exército nazista, separado e guardado. Malas, sapatos, próteses, pincéis de barba, aparelhos de barbear, xícaras e até mesmo urinóis estão expostos em vitrines enormes.

Mas nada é mais chocante do que uma das vitrines, onde está acumulado todo o cabelo raspado das mulheres mortas nas câmaras de gás. Os nazistas utilizavam esse cabelo para a fabricação de sacos. Confesso que nesse momento me sinto nauseado tentando descrever essa cena, da qual não temos registro fotográfico (por proibição explícita na sala). Mas faz-se necessário o registro, e ele existe – na internet, efetuado por pessoas que desrespeitaram esse aviso. Não destacaríamos esse tipo de desrespeito aos regimentos internos de qualquer lugar, mas provar sua existência é necessário – pois é racionalmente inconcebível acreditar que um dia isso aconteceu.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Imensas vitrines com pertences roubados pelo exército nazista, e acumulados em verdadeiras pirâmides.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

Os sapatos, num ângulo cuja perspectiva da quantidade é muito mais evidente.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

E a inacreditável quantidade de cabelos, raspados após a morte das mulheres na câmara de gás. Deviam ter um comprimento mínimo, para que pudessem ser utilizados na confecção de sacos. Uma imagem surreal.

Dentro dos prédios, fotos são proibidas na maioria das áreas – possivelmente para facilitar a fluidez no fluxo dos diversos grupos de visitantes. Quando permitidas, somente sem flash. O tempo para as mesmas é bastante reduzido – porém, é possível fazê-las sem correria e com qualidade. A maioria dos ítens de época são preservados em cabines de vidro, enquanto diversos painéis detalham todo tipo de informação pertinente. A comunicação interna é feita de forma sóbria, direta e extremamente didática, não deixando margem para interpretações erradas sobre o que está relatado.

Em algumas áreas, salas inteiras permanecem preservadas e/ou restauradas. Alojamentos dos prisioneiros, algumas salas onde operava o comando do exército nazista, e no subsolo que pudemos visitar, celas tão minúsculas que os prisioneiros encarcerados tinham sua musculatura forçada ao extremo quando “encaixados” naqueles cubículos, com morte certa em um curto período de tempo. Mesmo com as explicações cuidadosas da guia, o cenário era desolador e cada vez mais inacreditável.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

O local onde as mulheres tiravam suas roupas. De lá, eram conduzidas em pares até a área externa, onde eram executadas.

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Um dos dormitórios (na parede, a foto com os prisioneiros).

Sobre as explicações dadas durante o tour, vale um adendo: o cuidado e a delicadeza em tratar o assunto sem ofender este ou aquele povo é notável. Em nenhum momento mistura-se o povo alemão à mentalidade presente no comando nazista, e seu maior expoente – cuja nacionalidade, não esqueçamos, é austríaca. Parece pouco, mas separar muito bem as coisas é um dever histórico dos mais importantes.

Viajar no tempo é um exercício constante durante o tour, e se colocar no lugar daquelas pessoas é inevitável. Não há um minuto em que sua cabeça não esteja funcionando sob um prisma de um prisioneiro – ou de um nazista. Sim, é hipocrisia dizer que a gente só se coloca no papel do massacrado, quando o maior desafio é tentar entender a cabeça de quem massacra. Por isso mesmo, você acaba por diversas vezes tentando entender o personagem, mesmo sem querer. Absurdo dizer isso? Desumano? Não amigos… eu garanto: o desgaste mental ao final do dia tem muito a ver com esse exercício involuntário, de tentar compreender o incompreensível.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Um detalhe da sinalização dos blocos.

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

Dé, o nosso grupo e os rádios onde recebíamos as informações da guia (na imagem, de bolsa vermelha).

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível...

E mesmo em momentos onde aparentemente o lugar não parece algo tão terrível…

...bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

…bastam apenas alguns passos para voltarmos à realidade.

Dos momentos mais pesados que tivemos lá dentro, destaco três:

– Uma área entre dois prédios, onde encontra-se o muro de fuzilamento. O espaço tornou-se um pequeno memorial, que estava cercado de flores. No alto, atrás da parede de tijolos que une os blocos 10 e 11, uma bandeira que faz alusão aos uniformes dos prisioneiros – com listras azuis e um triângulo vermelho invertido.

A lembrança dos prisioneiros.

A lembrança dos prisioneiros.

E sua terrível sentença final.

E sua terrível sentença final.

– A forca onde Rudolf Höss – comandante do campo de concentração – foi executado. Quase no fim do tour da manhã, poderia ser um fechamento “positivo” para tanta desgraça relatada durante a manhã (na minha cabeça e pelos meus valores, não existe nazista que mereça perdão – e eu posso dizer isso de consciência muito tranquila).

O último ato de Rudolf Höss.

O último ato de Rudolf Höss.

– Visitamos uma câmara de gás, por dentro. Entrar naquele pequeno galpão foi uma das sensações mais sufocantes e dolorosas de todo o dia (e posso dizer, da minha vida). São poucos segundos de escuridão, interrompida por lâmpadas amareladas e pequenos feixes de luz vindos dos buracos do teto, onde era despejado o Zyklon-B. Marcas na parede, silêncio, até sua respiração parece ecoar enquanto você absorve uma das maiores crueldades pensadas pelo ser humano. Sair de lá, olhar pra trás e imaginar o que aquele lugar – hoje inofensivo – já foi um dia é tão, mas tão pesado e terrível, que é impossível não sair rasgado de dentro pra fora.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

Dois minutos bastaram, no lugar mais terrível que já visitei na vida.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror... é impossível definir o que se sente ali dentro.

A parte de dentro: marcas nas paredes, calafrios, vontade de chorar, horror… é impossível definir o que se sente por ali.

Obviamente foi o último ponto antes do período do “descanso” entre os dois tours, pois não há emocional que resista. Todo mundo precisa dessa pausa, para voltar à própria realidade, almoçar/lanchar e se recuperar um pouco para a segunda parte do dia. Comemos alguma coisa, voltamos para a van e esperamos o grupo se reunir. O dia estava cinzento, com ameaça de chuva leve. Eu acredito que até mesmo o clima reforçava as sensações daquela visita.

Contarei sobre Auschwitz II-Birkenau no próximo texto.

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Um comentário

  • Responder Adriana Berti 19 de novembro de 2015 às 16:46

    Nossa…nossa….
    Mal consigo imaginar este lugar. Ou conceber tudo o que fizeram. Ato da crueldade mais absurda que vimos e por tanto tempo. Inacreditável que isso tenha, de fato, ocorrido na história da humanidade.
    Relato impecável. Estou emocionada e agora com vontade de visitar este lugar para poder olhar pra mim mesma e agradecer por ter uma vida tão suave e colorida, num mundo em que há mais amor que ódio obsessivo. Pelo menos destes assim tão declarados.
    Triste pela humanidade e compadecida destas histórias. A casa de Anne Frank, em Amsterdã, foi um dos lugares mais tensos que visitei também. Principalmente porque li tudo sobre ela e todos os seus contos/diário. É uma coisa absurda sempre que relemos. Inaceitável.
    Mas, ainda assim, tão intrigante que não dá pra parar de ler sobre isso. Detesto história, mas por algum motivo, esta parte me deixa absolutamente seduzida. Pois é realmente difícil de entender o lado de quem massacra. E olha que já tentei muitas vezes. Mas a extensão deste terrorismo é INSANO e incompreensível.

    #loucaprosegundotextoaindaquemesintamagoada

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